domingo, 20 de novembro de 2016

Luke Cage e a Questão da Representatividade Negra


                Luke Cage é o terceiro personagem da Marvel Comics a ganhar uma serie própria da Netflix e, como foi nas revistas dos anos 70, é o primeiro personagem negro de histórias em quadrinhos a ter um título próprio. Esse fator, por si só, já faz a série se destacar entre os demais, junto com as musicas, o Harlem e um pouco da cultura Afro-americana, fazem com que Luke Cage tenha como tema principal não os super-heróis fantasiados, mas a representatividade negra em vários espectros narrativos.
            A série retrata a vida fictícia de Carl Lucas (Lucas Grant nas HQs originais e ambos alter-egos de Luke Cage) um ex-presidiário que passou por uma experiência cientifica na ilha-penitenciária de Seagate em troca da redução de sua pena, mas algo dá “errado” e Luke, interpretado por Mike Colter que já havia aparecido em Marvel’s Jessica Jones, acaba adquirindo poderes de super força, certo grau de regeneração e o mais marcante, pele invulnerável a quase qualquer tipo de ferimento.
            Entretanto, Cage não quer se tornar um super herói, principalmente devido à morte de sua amada Reva Connors, interpretada por Parisa Fita-Henley, e que também já havia aparecido na série da Jessica Jones. Assim ele foge da prisão e volta para o bairro do Harlem em Nova Iorque tentando, infrutiferamente, levar uma vida pacata trabalhando em uma famosa barbearia do parente da falecida Reva chamado de Henry Hunter, ou carinhosamente “Pop”, interpretado pelo excelente ator Frankie Faison.
            A série marca mais uma parceria do canal de streaming Netflix com a editora Marvel Comics e agora tendo o brilhante Cheo Hodari Coker como desenvolvedor, roteirista e showrunner.
Assim como nas séries anteriores, Luke Cage também é um personagem de Histórias em Quadrinhos e foi criado em 1971 por Archie Goodwin, George Tuska e John Romita sobre as idéias inovadoras de Stan Lee que queria “entrar na onda” dos filmes do inicio da década de 70 que tinham agora personagens negros, escritos para um publico negro por diretores e roteiristas negros.
Esse era o contexto do chamado Blaxsploitation.
A expressão veio da junção das palavras Black que significa preto ou negro e Exploitation que significa exploração, ou seja, Exploração Negra, mas no sentido de priorizar a comunidade negra dos Estados Unidos como consumidor principalmente de filmes, mas depois também de séries, livros e até histórias em quadrinhos. Esse se tornou um movimento com grande apelo e importância, pois os afro-americanos além de não se sentirem representados pelo cinema da época, os produtores viram uma chance de explorar toda uma cultura que ainda não tinha sido mostrada a contento.


Assim esse inovador estilo já contava com expoentes filmes como Sweet Sweetback de Melvin Van Peebles e Shaft de Gordon Parks, ambos também lançados em 1971 tendo como inspiração os antigos Race Films e indo na contra mão da industria hollywoodiana que na época raramente colocava negros como protagonistas em filmes ou, se colocava, era algo bem longe da realidade em que viviam os afro-americanos nesse período. Pouco depois o Blaxsploitation passou por uma fase antropofágica, muito semelhante a escola literária modernista brasileira, que visava pegar filmes já existentes e colocar protagonistas negros como foi Blácula (1972) de William Crain, The Black Godfather (1974) de John Evans e O Mágico Inesquecível (1978) de Sidney Lumet que, esse último, fez muito sucesso na época por contar com a participação especial de Michael Jackson e era praticamente o Mágico de Oz com personagens negros.
Entretanto, a questão não era apenas trazer personagens negros como protagonistas ou buscar atores, autores e diretores afro-descendentes para ter uma melhor caracterização dessas criações, mas também buscar toda a cultura afro-americana como contexto e enredo para que assim a comunidade negra finalmente pudesse se sentir representada no cinema, televisão ou qualquer outra mídia cultural.
Logo a Marvel Comics, que sempre tentava se manter atualizada as questões de seu contexto, trouxe na primeira revista de história em quadrinhos com um negro como personagem principal e tentou não apenas ter um personagem afro-descendente, mas levar como pano de fundo a cultura negra dos afro-americanos. Na verdade a empresa já tinha inovado com o primeiro personagem negro das HQs, o Pantera Negra, mas este, até então, aparecia como coadjuvante nas revistas do Quarteto Fantástico e por ser africano não havia uma identificação direta com os leitores dos Estados Unidos.
Assim Luke Cage vive no Harlem, bairro da cidade de Nova Iorque que nos anos 70 estava abandonado a degradação pelo Estado e embora vivesse no meio de as gangues criminosas e com criminalidade alarmante. Muitos bairros da periferia novaiorquina passavam pelos mesmos problemas como o caso do Bronx que também foi palco de explosões culturais que iniciaram um movimento artístico-cultural genuinamente afro-americano como o Hip Hop que acabou trazendo um pouco de paz aos jovens que tentavam fugir da violência e drogas que os cercavam de todas as maneiras, da mesma maneira que, tardiamente, se buscou reconstruir o Harlem.


O Harlem também seria explorado pela série da Netflix quase como um personagem próprio. A identidade do bairro novaiorquino é trazida de forma ainda mais marcante que foi trabalhada nas antigas HQs do personagem nos anos 70 e, embora tenha sido atualizada para os dias de hoje, trás antigas questões como a reconstrução do bairro e uma apologia a sua própria cultura.
Tudo isso novamente se entrelaça com o blaxploitation que a série parece trazer de volta com tantos atores, produtores e diretores negros bem como trazendo a cultura afro-americana representada pelo Harlem de maneira natural e sem muitos estereótipos não “denegrindo” ou romantizando demais os personagens negros que na série figuram tanto como heróis e vilões.
Talvez esteja na trilha sonora e nas músicas os melhores exemplos da cultura afro-americana sendo explorada na série, onde cada capítulo é dedicado a uma música ou álbum famoso que passa por alguns espectros da musica negra estadunidense sendo representada não apenas pelo Rap, como geralmente acontece nesses casos, mas também com o Soul, Blues e Jazz. A música não figura apenas como trilha, mas os cantores e bandas acabam realmente aparecendo na série, principalmente se apresentando no Harlem’s Paradise, a boate do vilão Boca de Algodão.
Todos esses detalhes trazem uma melhor imersão à narrativa da série e faz com que seja considerada uma das melhores, em termos de produção, desenvolvida pela Netflix para os super heróis da Marvel Comics. São músicas que não apenas embalam a cenas de drama e ação ou que são apresentadas apenas de forma comumente reduzida e até banalizada, como é recorrente em muitos filmes e séries. Em Luke Cage as músicas são apresentadas evidenciando que a cultura negra dos Estados Unidos é incrivelmente rica e diversificada. 
Assim sendo, a série da Netflix acaba tendo uma importância enorme e se tornando muito mais que apenas uma adaptação de super heróis das histórias de quadrinhos da Marvel Comics. Sua importância se mostra na representatividade, pois não apenas um garoto negro poderia se identificar melhor pelo personagem ser de sua etnia, como o Pantera Negra, por exemplo, mas mais que isso, Luke Cage era da periferia dos Estados Unidos e isso o trazia bem mais próximo do público.
Era um negro do Harlem vestido com moletom e capuz, que a mídia e a sociedade o colocaria como estereótipo de bandido, mas aqui Luke era um herói ou parafraseando o vilão da série, era o Capitão América do Harlem.
Na mesma forma que os quadrinhos dos anos 70 buscaram uma maior representatividade negra, a série da Netflix também vai pelo mesmo caminho buscando além das referencias quadrinísticas, mas tendo a sensibilidade de entender como esse tema estava em foco nos dias de hoje, recriando e modernizando a representatividade do blaxsploitation junto a temas mais atuais, talvez esperando ter o mesmo efeito ocorrido no passado. Um garoto negro pode muito bem sair do cinema tendo o Capitão América como herói, mas agora poderia ter um herói muito mais parecido com o jovem também, um protagonista que, como ele, poderia ser preconceituosamente confundido com um marginal comum andando pelas ruas.


Assim Luke Cage se torna a alma do Harlem e, apesar de todos os esforços do Boca de Algodão em desmoralizá-lo, o bairro se identifica com Luke fazendo os episódios da segunda metade da série sejam vibrantes e servindo como uma alegoria perfeita para a intenção dos produtores em mostrar a importância e atualidade da série de modo muito semelhante ao contexto do lançamento dos quadrinhos originais.
A busca do proprietário do Harlem’s Paradise e vilão Stokes, brilhantemente interpretado por Maharshala Ali, em destruir a imagem moral do herói pode ser a única resposta que o antagonista tinha de derrotar um Luke indestrutível e muito mais poderoso que ele mesmo. Faz parte da narrativa construída pelas séries da Netflix onde cada vilão parece ter um foco de ataque, como Fisk atacou a imagem do Demolidor ou Killgrave agredia psicologicamente a Jessica Jones, mas no caso do Boca de Algodão o ataque moral se encaixa perfeitamente na idéia de representatividade e evidencia os preconceitos e tentativa quase impossível de alguém da periferia viver alheio ao meio de ilicitude e buscar um caminho mais honesto.
A representatividade realmente é o foco da série, como deveria ser, e mesmo tendo um protagonista mulherengo, e assim sendo, de narrativa muitas vezes machista, temos várias mulheres fortes sendo representadas quase sem os clichês do gênero. Temos, como exemplo de heroína, uma policial chamada Misty Knight, interpretada pela Simone Missick, que é honesta em uma corporação corrupta e de sexualidade bem resolvida; bem como temos a vilã manipuladora e política Mariah Dillard que encontrou na atriz Alfre Woodard uma interpretação perfeita.
Estão em todos esses esforços; a música e o tema buscando e modernizando suas origens bem como toda a homenagem a cultura afro-americana, o que fazem Luke Cage estar entre as melhores séries da Netflix e, se não tem uma estória tão envolvente como as outras da parceria com a Marvel, está é a de melhor produção sem dúvidas. Uma importância social que amarra todo o enredo da mesma forma que fizeram em Jessica Jones, mas em uma produção ainda mais bem trabalhada e acertada.
Infelizmente vários aspectos dos quadrinhos foram esquecidos como fato de Luke ter sido um Herói de Aluguel, ou seja, oferecendo sua ajuda por um preço. Temos pequenas referencias a isso na série, mas Luke não chega a atuar como tal. Este fator pode muito bem ter ocorrido devido à busca pelo foco da representatividade, mas é triste ver o quanto o personagem poderia ter crescido durante os episódios se partisse do ponto de cobrar pelo seu auxilio e talvez perto do final ser um herói sem essas amarras ou apenas nunca exigir pagamento das pessoas do Harlem como nas HQs. Poderia ser um desenvolvimento que tornaria a primeira metade da série menos parada e buscaria já uma referencia com a próxima série do Punho de Ferro, pois esse era o parceiro de Luke nas estórias dos Heróis de Aluguel.


No entanto, talvez tenhamos que parabenizar e agradecer que os produtores não tenham usado todas as referencias dos quadrinhos e passado bem longe da fase da Marvel Max do personagem. Embora tenha sido escrito pelo brilhante roteirista Brian Azzarello, Luke Cage do selo adulto da Marvel não teve poucas edições a toa. Arcos cheios de preconceitos de uma periferia estereotipada que nos traz estórias fracas e com nenhuma intimidade ou reconhecimento com as comunidades negras estadunidenses. Foi à contramão de tudo que tinha sido construído com o personagem e devidamente esquecida em revistas posteriores. Quem sabe a série ter bebido da fonte blaxsploitation e colocado produtores não apenas negros, mas que entendem da realidade do Harlem e a revista buscar um ótimo roteirista, mas de outra realidade, não nos faz refletir ainda mais sobre a importância da representatividade?
Finalmente temos mais uma ótima série baseada em histórias em quadrinhos; se não pelo roteiro, mas pela produção e importância; que nos traz bem mais do que combates e referencias super heróicas, mas questionamentos importantes que tinham tanto significado nos anos 70 e continuam até hoje martelando sobre a importância da representatividade e os espaços que os negros têm na cultura pop.