quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Homem de Aço: O Superman humano de Brian Michael Bendis

Homem de Aço é uma mini série em seis partes lançada pela DC Comics em 2018 (e ainda inédita no Brasil) que faz parte da mudança de equipe criativa planejada pela editora para o Superman e abre o terreno para que seu novo contratado, Brian Michael Bendis, tenha inicio nos títulos principais do personagem. Para entender todo o significado dessa nova iniciativa, devemos primeiro compreender sua trajetória.


Brian Michael Bendis é um renomado (e controverso) quadrinista que já foi chamado de um dos maiores propulsores da Marvel Comics para o século XXI. Nascido em Cleveland no estado de Ohio e como muitos leitores de histórias em quadrinhos, Bendis adorava criar personagens e seus próprios enredos quando era criança. Conhecido mais como roterista, mas na verdade ele também é artista iniciando sua carreira como caricaturista e ilustrador pela editora Calibar Press.
Foi ganhando sucesso em revistas detetivescas ao melhor estilo Noir como Fire, Goldfish e Jinx; além da famosa Torso em que Bendis fala sobre a resolução de crimes em Cleveland tendo como personagem ninguém menos que o próprio Elliot Ness (responsável pela prisão do famigerado mafioso Al Capone) pela Image Comics. Pela mesma editora tivemos Powers, que trabalha crimes envolvendo super-heróis.


 Tudo isso lhe rendeu um convite de Todd MacFarlane (criador da revista Spawn) para um spin off de seu título chamado Sam & Twitch que envolve os dois detetives que já tinham aparecido nas revistas do soldado do inferno.
Sendo reconhecido pelo meio dos quadrinhos, Bendis finalmente é chamado pela Marvel Comics para “trazer a editora para o século XXI” e assim ele se envolve com a iniciativa do chamado Universo Ultimate trabalhando junto com outros grandes nomes da indústria como Bill Jemas, Joe Quesada e Mark Millar criando o aclamado personagem Homem Aranha Milles Moralles.


Durante o ano de 2001, Brian Michael Bendis acaba criando o selo Marvel Max introduzindo a melancólica personagem Jessica Jones na revista Alias. Assim com uma carreira consolidada na editora, Bendis é chamado para mais um projeto audacioso três anos depois, a reestruturação da principal equipe da Marvel Comics, os Vingadores.
Na sua passagem pela equipe de super heróis que vão dos arcos Vingadores A Queda e Vingadores o Cerco, Bendis trás os Vingadores ao patamar de título de maiores vendas da editora, lugar que antes eram dos X-Men e do Homem Aranha. Ainda na Marvel, algum tempo depois, ele ainda escreve no titulo do Demolidor fazendo de sua fase uma das mais aclamadas do personagem.
Nesse momento você pode estar se perguntando o que tudo isso tem relação com sua nova fase na DC Comics à frente do título do Superman. Tem tudo, pois Bendis coloca toda sua experiência e trabalhos anteriores na nova mini-série O Homem de Aço e contra todos os receios dos leitores ele acaba se saindo muito bem!


A trajetória nos quadrinhos de Bendis, principalmente na Marvel, nos mostra sua genialidade em trabalhar temas bem cotidianos mesmo com super-heróis. O quadrinista nos mostrou o lado mais humano do Demolidor e uma heroína cheia de falhas como Jessica Jones além dos diálogos e relações entre personagens incríveis como em sua brilhante passagem em Vingadores.
Os dramas cotidianos e a humanidade por trás das máscaras e uniformes espalhafatosos eram justamente as maiores qualidades de Brian Michael Bendis e ao mesmo tempo a maior preocupação dos leitores quando souberam que ele iria trabalhar com o Super Homem na DC Comics.
Como Bendis trabalharia tudo que faz de melhor justamente com um personagem tão poderoso e tão fora da realidade como o Homem de Aço?
Haviam vários caminhos a seguir e talvez o mais obvio dele seria trabalhar mais com o alter ego do Superman, o repórter Clark Kent. Envolver o universo de noticias do Planeta Diário e as relações entre seus personagens como Lois Lane, Perry White ou Jimmy Olsen. No entanto, essa seria uma saída fácil demais e já trilhada com brilhantismo por outros autores. Bendis faria diferente desta vez.
Ele humanizaria o próprio Homem de Aço.


Claro que todas as coisas que faz do personagem “super” ainda estão lá, mas Bendis tem a sagacidade de nos mostrar o cotidiano do Superman mesmo com o extraordinário. A saída do quadrinista é mostrar o mirabolante como algo cotidiano na vida do Super Homem. Tudo que o torna incomum permeiam a vida do Homem de Aço, no entanto, vários dilemas bem comuns são mostrados e até aprofundados.
Somos convidados a entrar mais intimamente na mente do Superman e assim podemos ver suas duvidas e o peso que o personagem carrega, até mesmo por ser poderoso de mais. O Homem de Aço também tem receios e preocupações, principalmente por que uma falha sua pode acarretar em um desastre de proporções inimagináveis. É um fardo grande ate mesmo para o personagem e com isso Bendis produz o impossível ao fazer com que nos identifiquemos com alguém que está tão longe da nossa realidade.
Isso se torna evidente quando o quadrinista cria vários acontecimentos que abalam o personagem e mostra outro ponto genial da abordagem que Bendis escolheu...
 O Super Homem voltará a ser um símbolo de esperança e heroísmo.
Seja visualmente, como a volta da “cueca sobre a calça” ou psicologicamente, Bendis resgata o Homem de Aço como símbolo de justiça a ser seguido não apenas os outros personagens, mas ao próprio leitor. Pode parecer um paradoxo trazer um Superman mais humano dado a leves autocríticas e mesmo assim inspirador, mas aqui está o ponto que Bendis sabe muito bem trabalhar.
Justamente pela possibilidade de falha e pela humanidade do personagem que faz dele heróico cuja bondade e sensibilidade é apurada o suficiente para ele se importar com a vida e a felicidade do próximo. São precisamente seus questionamentos que dão ao Super Homem a consciência e propriedade de fazer o bem, não importando o quão desafiador essa conduta pode ser.


Superman é bom não por que ele é perfeito, mas por ele ter toda uma responsabilidade auto-imposta. Ele é bom por ele tem que ser. Sem parecer ser forçado ou piegas, tratando tudo de natural e com uma suavidade tocante. Uma nova visão que não deixa de ter como base tudo que foi feito no passado. Uma exploração mais intimista do super herói e para que funcione, Bendis deve se focar no Homem de Aço, para construir os alicerces do que ele trabalhará no futuro.
E não teria como ele reconstruir o Superman se tivesse uma profusão de outros personagens permeando sua estória, logo Bendis faz o que há de mais polêmico na sua mini-série, desaparece com a sua família, Lois e filho John, gerando bastante alarde e sem dar muitas explicações no inicio da mini-série. Essa é com certeza a parte mais arriscada de sua narrativa e, sem dar muitos spoilers, Bendis o faz muito bem explicando o ocorrido gradativamente em sua estória e ainda com pontas soltas instigantes para trazer futuramente.
Aqui temos outro exemplo uso de recursos narrativos bem construídos. Bendis brinca com os acontecimentos indo e voltando ao passado sem que isso fique de maneira confusa e deixando o leitor cada vez mais interessado em todas as camadas da estória, pois há elementos tanto no presente quando ao passado que interessa ao quadrinho mesmo não fazendo parte da trama principal.  
Entretanto não é só com a questão da família que o quadrinista volta ao tempo, pois novos elementos são introduzidos por Bendis à origem do Super Homem, principalmente no tocante da destruição de Krypton. Outra medida arriscada que infelizmente Bendis acaba não trabalhando tão bem.


Além de introduzir Rogol Zaar, um novo antagonista que tem uma importância incrível para a estória do Superman, Bendis não consegue dar o peso necessário ao algoz que apesar de fazer algumas atrocidades na revista, o inimigo não tem o carisma necessário para se tornar marcante como deveria e acaba sendo mais um vilão genérico, até mesmo em sua aparência, ao enfrentar o Homem de Aço.  Talvez essa seja a maior falha da mini-série, pois o quadrinista se focou tanto no herói que acabou não explorando tão bem sua contraparte. Mas quem sabe isso será corrigido pelo autor nos títulos vindouros?
A despeito dessas falhas, Bendis constrói uma ótima narrativa ao escolher, mais uma vez, não ir pela saída usual daqueles que costumam a escrever o Homem de Aço, ou seja, o quadrinista escreve uma trama intimista sem cair na problemática de escrever estórias épicas. Busca temas simples, mas profundos, onde pode explorar com mais tranqüilidade a personalidade do Superman que, afinal como vimos em tantos dos seus outros trabalhos, é a sua especialidade. O autor faz isso sem modificar tanto o personagem quanto o próprio universo ao qual o Super Homem está inserido.
 Aliás, raramente vi o uso do Universo DC tão harmônico em uma mini-série de quadrinhos focada em apenas um herói e rendendo ótimas aparições seja da Liga Da Justiça; seja de personagens do núcleo do Homem de Aço, como a Supergirl ou até alguns easter eggs e questionamentos que sempre estiveram na mente dos leitores como onde estava o Lanterna Verde do setor quando Krypton foi destruída.

Brian Michael Benis tinha a missão inglória de estrear na DC Comics com seu personagem mais icônico que foge totalmente do que está acostumado a escrever em uma curta mini-série que plantaria a base para que ele assumisse os dois títulos principais do Homem de Aço. Apesar de todas as duvidas dos leitores o quadrinista faz isso muito bem e deixa um sentimento muito promissor do que estará por vir nas próximas edições das revistas Action Comics e Superman


segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Justiceiro do Anti-Heroísmo à Psicopatia


Sempre foi muito complicado escrever sobre a maioria dos personagens de história em quadrinhos, pois geralmente sua revista é antiga e simplesmente vários autores passaram pelo personagem onde cada um quis deixar sua marca nas revistas. Ainda mais um personagem famoso e relativamente antigo como o Justiceiro que teve vários dos grandes autores e artistas da Marvel Comics em seu título e tem mais de quarenta anos de existência na editora.
Logo, Frank Castle, como qualquer personagem antigo dos quadrinhos, tem uma verdadeira profusão de caracterizações de acordo com seus roteiristas mudando tanto sua personalidade bem como o tom e clima de suas histórias. Podemos ter um enredo mais investigativo em seqüências detetivescas como escrito por Greg Rucka; ou histórias de violência crua e brutal como na fase do aclamado Garth Ennis; um Justiceiro estrategista militar que tenta sobreviver em um mundo cheio de super heróis e super vilões como com Nathan Edmondson ou até mesmo mais recentemente escrito pela ótima Becky Cloonan que transforma Castle em uma máquina de matar com todo o clima dos antigos filmes de assassinos em série. Mas não importa. Existem características fundamentais no personagem que formam o alicerce de suas histórias que permeiam o íntimo de sua personalidade, talvez desde sua criação nos anos 70 sendo tratado com mais profundidade ou não pelos quadrinistas, no entanto, sempre presente.
O anti-heroísmo e a psicopatia.

O Justiceiro (The Punisher) foi um personagem criado por Gerry Conway, Ross Andru e John Romita na revista da editora Marvel chamada The Amazing Spider-man de número 129 publicada em fevereiro de 1974, que recentemente foi trazida na Coleção Histórica Marvel: Paladinos Marvel Volume 4 da editora Panini.

Nesse início Frank Castle (ou Franco Castilione) foi concebido como um antagonista para o Homem Aranha, mas rapidamente conseguiu muita popularidade se tornando o talvez maior símbolo de anti-heroísmo das comics.
Primeiramente podemos refletir um pouco sobre o que é um anti-herói, pois apesar do termo ter sido criado na Grécia Antiga, seu significado contemporâneo teve uma alteração significativa. Para os helenos na antiguidade um anti-herói era alguém capaz de atos de altruísmo e heroísmo, mas diferente dos heróis divinos do imaginário grego temos homens e mulheres cheios de defeitos e falhas sejam físicas ou em algumas vezes até de caráter. No entanto, são personagens que vencem suas limitações e acabam realizando ações dignas do reconhecimento dos Deuses. Se fossemos analisar o significado grego do termo; o Demolidor, o Homem Aranha e o Homem de Ferro seriam exemplos melhores de anti-herói, entretanto o termo é utilizado de outra forma nos dias de hoje. 

A versão contemporânea de anti-herói, esse é um personagem de qualidades bem diferentes, seria uma espécie de herói que não tem os valores consagrados do bom mocismo e se torna capaz de cruzar a linha que separa o bem e o mal para concluir seus objetivos de salvar inocentes. Realizar o que o personagem entende de correto. Logo, nas comics isso se aplica ao maior tabu dos super-heróis nas histórias em quadrinhos, ou seja, são heróis que matam.
O Justiceiro é um personagem que como qualquer herói Marvel que busca salvar os inocentes combatendo criminosos, e até super-vilões, mas ao invés de inspirar as pessoas por um código de ética e moral apurados, como o Capitão América, por exemplo, Frank Castle usa táticas de tortura e armas militares extremamente letais para atingir seus objetivos e salvar o dia no final, mesmo que seja um fim sangrento, brutal e lotados de mortes escatológicas com corpos dilacerados da bandidagem.
Assim sendo, da mesma forma que podemos encarar o Justiceiro como maior representante do anti-heroísmo contemporâneo, temos o Homem Aranha representando esse anti-heroísmo clássico de herói cheio de defeitos e dilemas bem humanos. O quão é interessante que foi justamente em uma revista do aracnídeo dos anos 70 que vimos pela primeira vez à emblemática caveira e expressão carrancuda de Frank Castle.

Então temos um personagem durão que não tem medo de usar os mesmos meios dos inimigos marginais para conseguir enfim varrer a criminalidade de sua cidade. Claro que o Justiceiro não poderia ter estórias tão ingênuas e fantasiosas como de seus colegas super heróis da editora. Suas revistas teriam que ter um tom mais realista e urbano e mesmo seus inimigos não poderiam ser espalhafatosos de uma galeria de super vilões, mas algo mais parecido com criminosos comuns como traficantes de drogas ilícitas, mercadores da morte e marginais que aterrorizam a população comum.

Todo esse conceito do Justiceiro tem, claro, um contexto histórico dos anos 70 e a descrença dos estadunidenses em suas instituições depois da opinião publica se voltar contra a Guerra do Vietnã e a permanência de seus soldados no conflito. Ora, a população dos Estados Unidos nunca tinha visto uma guerra como essa ser televisionada e ficaram horrorizados com todas as barbaridades feitas no Vietnã inclusive pelos próprios soldados dos EUA e começaram a questionar se realmente havia a necessidade de se envolverem nesse conflito e quem estaria ganhando com tudo isso na verdade. Essa descrença pelas instituições também gerou uma crise de desconforto com a figura do herói convencional com sua moral rígida e ilibada. O Capitão América não era mais tão aclamado como foi nos anos 40 em conseqüência da Segunda Guerra Mundial.

Aquele bom mocismo não era mais apreciado.
A marginalidade nas cidades, principalmente em regiões periféricas, estava em um nível altíssimo e muito se perguntava qual era o real interesse das autoridades que não davam conta da criminalidade ou simplesmente tinham abandonado a população mais pobre. Um sentimento de revolta generalizada se instaurou nas pessoas e acabou influenciando toda uma cultura que via no ícone do anti-herói alguém que poderia de fato vingar o homem de bem de toda essa sujeira e criminalidade galopantes.
Logo temos uma enxurrada de anti-herois na cultura pop dos anos 70 e inicio dos anos 80 nos Estados Unidos. Temos na literatura personagens como Ignatius de Uma Confraria de Tolos escrito por John Kennedy Toole e Huckleberry Finn do escritor Mark Twain; no cinema tivemos Harry Callahan interpretado por Clint Eastwood em Perseguidor Implacável, Travis Bickle interpretado por Robert de Niro em Taxi Drive e claro o ícone do anti-heroismo Paul Kersey interpretado por Charles Bronson em Desejo de Matar. Assim nas histórias em quadrinhos não seriam diferentes com a popularidade do Justiceiro.

Na caracterização de Frank Castle como representante da Marvel Comics para essa onda anti-heróica, temos um vigilante que age fora da lei, muitas vezes tendo que escapar da policia, torturando marginais para conseguir informação e além de matar com extrema facilidade, o Justiceiro, por vezes, é dado a atos de crueldade a lidar com bandidos em sua vingança contra a criminalidade.
Vingança, pois o Frank Castle tem em sua origem uma família morta (esposa e dois filhos) por presenciar, em um parque, uma negociação da máfia. O Justiceiro ao invés de ir atrás apenas da máfia em questão compreende que toda a classe criminosa é culpada pelo ocorrido e entende que o que aconteceu a ele poderia ocorrer a qualquer um, logo ele deveria iniciar uma cruzada contra todos os marginais que fazem o cidadão comum sofrer e para isso ele tem a mãos todo o treinamento de fuzileiro veterano da Guerra do Vietnã à sua disposição. Não teria como ser mais clichê de personagem anti-herói dos anos 70 e 80.
No entanto, o apego do personagem a vingança e não justiça (entenda que o nome original do anti-herói é Punisher, que em uma tradução impossível seria algo como “Punidor” e não Justiceiro); tanto quanto seu apelo a violência e tortura nos faz refletir se o personagem realmente é dado a ações minimamente heróicas ou simplesmente o que move Frank Castle é o fato dele ser um psicopata.

Apesar de poucas vezes, é claro que esse questionamento já apareceu em suas estórias com destaque para a fase de Garth Ennis a frente do título do Justiceiro principalmente no excelente arco Nascido para Matar (Born de 2003) nos revelando que a psicopatia de Frank Castle veio antes da morte da sua família, mas durante a Guerra do Vietna, onde ele pode extravasá-la. Assim o personagem faria o mesmo contra a criminalidade em sua volta aos Estados Unidos depois do fim da Gerra.
Entretanto, é do mesmo Ennis o arco Bem Vindo de Volta, Frank (The Gathering Storm de 2000) que o personagem, apesar de claramente ter um rancor enorme contra a criminalidade, mostra atos heróicos e até altruístas. Tudo isso como uma narrativa do quadrinista para dar mais profundidade ao personagem, mas também nos faz refletir sobre os ideais do Justiceiro e nossa relação com isso.

Será que consumir e gostar das estórias do personagem nos revela que somos tão vingativamente psicóticos como o Justiceiro ou é uma válvula de escapismo onde botamos para fora, ao ler, toda nossa revolta contra a criminalidade cada vez mais assustadoramente gritante? Compreender o personagem e até nos identificarmos com ele faz com que compactuamos com ideais proto-fascistas e que concordamos com a máxima “bandido bom é bandido morto”?
A revista do Justiceiro faz apologia ou incentiva a violência?
Acredito que a importância de um personagem como esse é justamente levantar esses questionamentos principalmente quando seus ideais são postos a prova nos faz refletir em quem somos e talvez em que tipo de sociedade buscamos. Mesmo quando não concordamos com as atitudes do Justiceiro temos nele um exemplo de como a sociedade pode acabar entendendo a justiça e a criminalidade e amadurece nossas próprias opiniões seja como sociedade, seja em nossa própria personalidade, ou seja, no entendimento de idéias divergentes à nossa.
Talvez por isso um dos mais importantes e aclamados encontros do Justiceiro com algum herói da editora seja seus, agora, vários embates com o Demolidor que quase sempre chega ao debate de idéias entre os personagens em um contraponto extraordinário entre o realismo cruel e justiça punitiva do Justiceiro e o heroísmo limpo e justiça na esperança de reabilitação do Demolidor.


 No entanto, isso seria assunto para outro texto...

sábado, 8 de dezembro de 2018

O Demolidor Otimista de Mark Waid


Demolidor, o Homem sem Medo, alter-ego de Matthew “Matt” Michael Mordock, é um personagem da Marvel Comics criado em 1964 por Stan Lee e Bill Everett, que acabou ganhando uma popularidade absurda nos anos 80 depois que um então jovem quadrinista chamado Frank Miller revitalizou o personagem em um período que a editora já pensava no cancelamento da revista por baixo consumo.  Miller não apenas conseguiu a façanha de fazer o Demolidor ser altamente vendável, mas também deu a identidade que conhecemos do personagem hoje como um herói sombrio e melancólico com estórias em tom bem mais adultas e realistas, escapando da formula de super-vilão diferente em cada mês ou publicação.

Assim, devido à enorme repercussão de Miller a frente do titulo do Homem sem Medo, muitos outros quadrinistas, que vieram posteriormente, continuaram a escrever estórias densas e urbanas com dilemas pessoais e morais. Logo o personagem se tornou um dos heróis mais sofridos na Marvel que, apesar de todas as suas tragédias e sendo literalmente massacrado por seus autores, o Demolidor acaba sempre por se reerguer de algum modo no final e vencer a vitória, mas quase sempre com um sabor amargo. Foi dessa forma que vários leitores têm compreendido o personagem durante esses anos até que veio Mark Waid para modificar o status quo do herói. 
Mark Waid iniciou sua carreira de argumentista de histórias em quadrinhos nos famigerados anos oitenta em pequenas editoras em mercado mais underground, mas logo conseguiu trabalho na DC Comics escrevendo, entre outras, Origens Secretas. Entretanto rapidamente se envolveu com o projeto de Legião dos Super Heróis do qual, diz, que o influenciou muito.  Fez sucesso logo depois à frente do título The Flash que o fez ser chamado a trabalhar pela concorrente Marvel Comics no título Capitão América. Aclamado por ambos, em 1996 produziu, junto com o renomado Alex Ross, o que viria a ser considerada sua obra prima; o Reino do Amanhã. Chegou a trabalhar como editor da Patrulha do Destino na renomada passagem de Grant Morrison pelo título e hoje é considerado um dos maiores quadrinistas da atualidade.

Waid nos trouxe um Demolidor que apesar de ter um passado carregado de tragédias horrendas ainda tem uma visão otimista e até ingênua. Pode parecer uma mudança sem sentido, mas é muito mais compreensivo que Matt consiga enfrentar tanta tristeza e desastres na sua vida tendo uma personalidade inabalável do que sendo alguém deprimido e que não consegue encontrar um sentido positivo em frente aos seus problemas. Um personagem assim também acaba por ser ainda mais atrevido diante dos perigos, o que acaba combinando bem com o termo do nome original do heróis em inglês, o Daredevil.
Claro que para uma mudança nesse aspecto não deveria contar apenas com a estória produzida pelo argumentista, os desenhos deveriam sair do estilo sombrio e por vezes Noir para algo mais vibrante. Para isso tivemos, em toda a fase do Waid, os desenhistas Paolo Rivera em parceria com o arte finalista Joe Riveira; que realizaram o inicio do arco, e Chris Samnee junto a Tom Palmer; que assumiram a arte do título até o final, além de alguns colaboradores como Kano, Khoi Pham e Emma Rios. O estilo mais limpo e cartunizado desses artistas colaboraram com o tom mais leve e otimista proposto por Mark Waid, mas deve-se destacar, para uma maior justiça com a todos envolvidos, os coloristas Javier Rodrigues, Laura Allred e Matthew Wilson que com suas cores chapadas e novos painéis com uma palheta bem mais colorida reafirmando o tom que Waid queria para essa fase do Homem sem Medo.

Toda essa alteração estética também pode ser facilmente explicada narrativamente devido à mudança do Demolidor para São Francisco, uma cidade bem mais vibrante o colorida do que a melancólica e sombria Nova Iorque onde Matt viveu toda sua vida.
Assim sendo, não temos apenas um Demolidor mais otimista, mas a própria vida do personagem dá uma trégua em toda profusão de tragédias que ele sempre está envolvido. Tornando as estórias com um ar mais leve também, apesar dos traumas de Matt sempre estarem presentes. Talvez o melhor exemplo dessa narrativa de Waid esteja representada na personagem Kristin McDuffie, a assistente da procuradoria e nova namorada de Matt que além de ser uma personagem extremamente positiva a estória acaba quebrando a máxima que toda namorada do Demolidor sofre na mão de seus arquiinimigos. McDuffie é forte e determinada sempre saindo de situações perigosas com inteligência a despeito do medo do Demolidor que algo lhe aconteça.

Logo Mark Waid faz toda uma revolução drástica de como o Demolidor encara o mundo, mas com total respeito aos quadrinistas que vieram antes dele. Os problemas e tragédias passadas continuam a permear o herói e o mundo continua a tentar puxá-lo para as sombras, mas agora sua positividade causa um novo gás ao enfrentamento de seus inimigos e dilemas pessoais.
Vale ressaltar aqui a doença terminal que o personagem Franklin “Foggy” Percy Nelson acaba contraindo na estória e a forma que Matt se torna otimista, pois agora ele tem que ser positivo para ajudar na recuperação do melhor amigo.
Entretanto, alguns leitores reclamaram muito dessa visão mais otimista do Homem sem Medo, principalmente por ter sido seqüência da fase em total estilo Noir de Alex Malleev, Brian Michael Bendis e Ed Brubacker. Ora, o tom melancólico, realista e sombrio já eram características definidoras do Demolidor agora e Mark Waid poderia ter descaracterizado o personagem em sua fase. No entanto, devemos refletir bem sobre essas afirmações.
Apesar do tom da revista ser mais leve Waid não deixou de lado os dilemas pessoais do Demolidor e os mesmos ainda perturbam o herói. Tudo que foi feito antes é reaproveitado em sua fase e apenas Matt toma uma atitude diferente diante seus problemas. O quadrinista muda o personagem, mas com respeito ao que foi feito e sem ignorar nada do passado do Homem sem Medo.

Aliás, aqui temos novamente o talento argumentativo do quadrinista que faz Matt, e até seu amigo Foggy, refletir profundamente sobre seu passado na forma de uma auto-biografia que o personagem se propõe a escrever a certa altura da estória.
Outra critica recorrente é que Mark Waid volta, de certa forma, a usar a fórmula de super-vilão do mês trazendo desde vilões clássicos, mas também considerados ridículos como o Coruja e o Garra Sônica; outros vilões pouco conhecidos como o Mancha e os Filhos da Serpente; e até novos vilões como os filhos do  Homem Púrpura, tirando o foco de antagonista que quase sempre ficava para o Rei do Crime, Wilson Fisk. No entanto, essa é uma analise preguiçosa, pois claro que Waid se vale de tramas obscuras, mas condutoras que trazem esses vilões apenas como distração ao Demolidor e homenagens ao passado do título.
Está justamente aqui outra genialidade do quadrinista.
Mark Waid volta as origens do personagem pré Miller e traz muitos elementos germinados por Stan Lee e Bill Everett que tinham já um tom mais positivo e otimista para o Demolidor. Por vezes ate mais engraçado como eram as histórias em quadrinhos naquela época áurea da Marvel Comics. Assim Waid não apenas respeita os quadrinistas que desenvolveram o lado soturno do herói, mas também trás elementos da origem do titulo combinando visões tão diferentes do personagem de forma impar e nunca vista antes. Agora teríamos um Demolidor completo que tem na bagagem simplesmente tudo que foi feito ao personagem de forma coerente, mas principalmente muito divertida e instigante de se ler.

Claro que essa fase tem seus altos e baixos, principalmente por ser um titulo mensal, que tem prazos muito apertados influenciando muito a qualidade em que as estórias são produzidas, mas podemos notar um inicio de arco absurdamente empolgante e um final simplesmente espetacular que não vamos entrar em detalhes para não estragar a experiência de quem não leu ainda.
Existe até uma genial e corajosa reviravolta bem no meio da fase de Mark Waid que além de abalar as estruturas e de como concebemos o personagem o autor mostra todo seu brilhantismo em mostrar as repercussões de tal revelação e não perde o ritmo narrativo de forma alguma, muito pelo contrario.
Talvez o maior mérito de Waid com seu otimismo para o personagem tenha sido não apenas nos proporcionar a incrível sensação que, depois de acompanhar as revistas por anos, poder ver um Matt sorrindo em frente às ameaças. Mas com isso também reforçar que o Demolidor é o verdadeiro paladino da Marvel que se firma inabalável a toda sua profusão de problemas. Um cavaleiro urbano que desafia o perigo audaciosamente e encara o inimigo com uma atitude atrevida que só é possível graças a uma confiança que apenas os maiores heróis possuem.


Mark Waid conseguiu escrever uma fase única do personagem que justifica as premiações que recebeu e trazendo elementos tanto novos como resgatando o que já havia sido esquecido do Demolidor. Com certeza esse arco ficará marcado como um dos melhores estórias do Homem sem Medo.