quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O Tempo e a Lua


Raistlin Majere sentou-se pesadamente na pedra já sentindo os efeitos de sua costumeira vertigem devido ao esforço físico provocado pela longa demanda. Sua saúde estava muito debilitada, mas sempre falava para si mesmo e aos demais companheiros que era o preço a se pagar por tanto poder recebido das Torres de Alta Magia. Sua pele amarelada lhe dava ainda um maior aspecto doentio sem falar dos cabelos brancos, mas nada se comparava aos excessos de tosse. Esses eram horríveis.
O mago vermelho estava em uma caverna gelada, mas era bem mais aquecida que a paisagem lá fora. Estalactites e estalagmites frias brotavam diligentes, mas a fogueira que seu irmão prontamente acendeu deve ser o suficiente para trazer calor e luz. Um local isolado dos outros que sempre buscava para consultar seu grimório e preparar suas magias diárias. Um processo longo e dispendioso que lhe exigia muita atenção e dedicação. Gestos elaborados, palavras estranhas e componentes materiais exóticos que provocavam um efeito na trama e geravam uma determinada magia.
Entretanto, antes dele sequer pegar o livro, uma pessoa se aproximou pela entrada da caverna e isso já o irritou. Queria um tempo para si e seus novos “amigos” pareciam não quererem deixá-lo em paz. Era sempre assim e aquilo estava incomodando Raistlin de uma maneira que afetava seu físico e veio a crise de tosse.
Foi assim que Lua Dourada o encontrou. O aparente frágil arcano estava limpando a boca com seu lenço que se tingira rubro como seu robe. Aquela era uma doença eterna que o matava por dentro e estaria sempre mostrando que o poderoso mago era apenas um mortal no fim das contas.
- Veio me curar princesa exilada de Que Shu? – perguntou o alto mago – Receio que a incomode ser sacerdotisa da Deusa da Cura e andar em uma campanha com alguém tão enfermo como eu.
- Eu posso... – tentou começar ela, mas Raistlin a interrompeu com novos rompantes de tosse e se levantou ignorando-a.
O homem se afastou dela indo em direção a fogueira em chamas buscando um pouco mais de conforto e aparentemente deu certo, pois suas crises deram finalmente alguma trégua. Entretanto Lua Dourada o seguiu e sentou-se do lado dele. O arcano a encarou e viu apenas olhos amáveis. Deveria ser uma linda visão observar aquela mulher, mas o jovem não poderia vê-la da forma que os outros viam. Não podia ver ninguém da forma que os outros normais faziam. Seus olhos de íris em formato de ampulheta viam apenas a passagem do tempo e como toda a matéria se deteriora. Não era uma linda jovem que o alto mago via, mas uma mulher envelhecendo e isso o deixava ainda mais triste e pessimista. A real percepção das coisas como costumava dizer para si mesmo. Tudo está sempre morrendo.
- Porque sempre se afasta dos seus amigos? – indagou a clériga – Eu sei que algo o incomoda, mas posso ajudá-lo!
- E nada a faria tão feliz não é mesmo? – ironizou o mago – Por trás de seu aparente altruísmo está à satisfação pessoal de sanar os males de alguém como eu ou levar para o rebanho esse cordeiro desgarrado.
- Você não é maligno, o que todos falam sobre ti não é verdade. Eu sei que existe bondade em você!
- Ora, sabes de muitas coisas não é mesmo? A grande princesa dos bárbaros já sabe tudo ao meu respeito, mesmo depois do que? Alguns dias que nos encontramos pela primeira vez na Hospedaria do Lar Derradeiro? Agora tu e todos estes teus “amigos” conhecem-me perfeitamente não é mesmo? Sinto dizer querida que as profundezas da minha alma sejam bem mais espessas!
- Sei o suficiente para dizer que o que tens posso curar, mas é a ti que não queres que eu te cure.
- Parabéns, você adquiriu a incrível habilidade de perceber o óbvio!
A lenha fumegante estalou distraindo os dois e dissipando a tensão que havia sido criada pela conversa. Raistlin aproveitou o momento para se retirar e ir mais adentro das sombras da caverna. Com apenas uma palavra mágica, shirak, ele fez a bola de cristal na ponta do seu cajado se iluminar e o usou-a como um archote para que não fosse totalmente imergido na escuridão.
Lua Dourada o seguiu prontamente, pois não queria desistir ainda de seu companheiro. Não sabia se havia verdade nas palavras dele. Ela, como qualquer mulher com sua sabedoria e comprometimento, questionava-se o tempo todo. Perguntava se estava sendo útil a causa dos deuses. Perguntava se era realmente um instrumento da vontade deles.
Assim a sacerdotisa o seguiu.
Caminharam por alguns metros mais adentro da garganta da caverna e quando o frio voltou a incomodar, Raistlin parou e encarou Lua Dourada nos olhos. Aquela não era uma das visões mais agradáveis, pensou ela, mas estava focada em seu objetivo e pedindo forças a Deusa ela iniciou.
- Vocês magos se acham inteligentes e são mesmo! No entanto é uma qualidade adquirida exclusivamente pelo conhecimento. Tanto aprendem, mas pouco sabem o que fazer com isso. Os arcanos valorizam muito pouco a sabedoria.
- Entendo. – disse Raistlin – Acredito que apreciem sua intuição e capacidade de tirar deduções baseados no nada. Claro que conhecimento é inútil não é mesmo? Já que são sempre guiados pelos deuses!
- Não foi... – a clériga parou, pois apenas agora tinha entendido como suas próprias palavras soaram arrogantes. – Eu só estou tentando entender você. – agora Lua Dourada estava conseguindo ser mais humilde – Sei que acha que eu o ajudo por arrogância, mas eu realmente acho que tem um lado bom em ti e por algum motivo não mostras... talvez por...
- Medo! – completou o mago vermelho – Não acho que seja arrogância querida, mas com certeza não é altruísmo. Você ficaria muito satisfeita consigo mesma se me conseguisse “salvar”. Isso não condiz com altruísmo não é mesmo? A grande sacerdotisa da Deusa da Cura se importa mais com estar agradando sua própria divindade que com minha alma, disso tenho certeza!
- Sabe o que eu acho? – Raistlin não respondeu, mas olhou para ela atento. Assim Lua Dourada achou melhor prosseguir – Acho que você fala muito sobre mim mesmo dizendo que nos conhecemos pouco. Diz-me que não sei nada sobre você, mas sabes muito sobre mim não? Acho que fala assim pra esquivar do ponto principal de nossa conversa.
- Quer saber sobre mim? O cavaleiro já não lhe disse o bastante? Sou um arcano e por isso só posso ser maligno e ele está certo, devo ser justo, pois nada ficará entre eu e meus objetivos. Qualquer um que se opor a mim sofrerá conseqüências e isso meu irmão pode lhe dizer melhor que eu mesmo!
- Será mesmo ou isso é apenas a projeção que os outros fazem sobre você? Talvez goste dessa imagem, pois isso lhe protege como uma armadura. Se você os decepcionar logo no inicio não ficará com remorso quando abandonar aqueles que ama, mas sabe de uma coisa? Todos têm um propósito! Guiados pelos deuses ou não e o grande mago Raistlin também tem o dele e tenho certeza que é bem diferente que eu ou qualquer um de nós possamos imaginar.
- Existem sombras em mim Lua Dourada. Mais que possa imaginar e sua cruzada para me salvar falhará vergonhosamente.
- Existem sombras em você? Ora, meu caro, existem sombras em mim e no mais altruísta dos heróis de Ansalon! Tal como existe bondade no mais perverso dos corações. Acha realmente que dizer que eu falharei vai me fazer desistir?
- Não! – disse o arcano – No entanto essa sua visão maniqueísta do mundo vai fazer com que cometa erros e vai se arrepender deles no fim. Bem e mal não existem realmente, são apenas pontos de vista.
- Agora sabes do meu futuro?
- Sabe por que eu tenho esses olhos de ampulheta? Por que eu vejo o futuro e tudo se desintegrando no processo. Eu vejo a sua morte como vejo a de todas as pessoas que conheço ó grande Filha do Líder! Quando todos vêem a linda e perfeita Lua Dourada eu apenas vejo seu corpo envelhecer inexoravelmente.
Aquilo fez o coração da sacerdotisa descompassar. Ela tentou disfarçar, mas percebeu no sorriso de Raistlin que tinha falhado miseravelmente. Se o mago vermelho dizia a verdade aquilo deveria ser horrível. Ver tudo morrendo... Então a clériga o entendeu. Finalmente alguém tinha compreendido. Como poderia haver esperança em alguém que só via o mundo em decadência e ruína?
- Talvez eu não possa o compreender meu caro. Todo mago se gaba por não ser marionete dos deuses, mas acaba sendo influenciado também.
- Como assim?
Ele fez uma pergunta e Lua Dourada percebera que realmente tinha chamado a atenção daquele homem tão reservado. Era aquele o momento que ela poderia ajudar verdadeiramente. Ela tinha que atacar sua arrogância.
- Os deuses podem não guiá-lo, mas você, como todos nós, é influenciado pelo seu meio. Pelas pessoas que dizem quem você é e pelas circunstâncias impostas pelo seu destino. Tenta desesperadamente ser dono de seu destino, mas se entrega a algo traçado por fatores que acredita não estar em suas mãos.
- Eu sou o que eu mesmo faço de mim!
- Então me prove isso e faça com que todos vejam que você não é o mago que eles projetam em você, mas que é bem mais que isso. Não dominamos o futuro meu amigo, mas pode ser o mestre do passado e do presente.
- Realmente existe sabedoria nas palavras de uma sacerdotisa! No entanto, como saber se sou o que sou por mim mesmo ou pelo meio em que vivo?
- Realmente existe inteligência nas palavras de um mago! Não saber é o que deve nos motivar, meu caro. Sofremos decepções, mas são elas que fazem nossa vida mais interessante...
Os dois sorriram e a imagem do arcano não era mais assustadora para Lua Dourada como a imagem da clériga não era mais tão mórbida para Raistlin.
- Receio que a decepcionarei sacerdotisa!
- Mesmo? Acho que ficará surpreso do quanto coloco minha fé em ti. Acho que você nos salvará antes do fim. Acredito mesmo!
- Eu vejo a morte minha querida e seu fim será com um grande sacrifício e isso é tudo que vou revelar sobre sua morte.
- Então é tudo que preciso saber e fico feliz, pois me mostraste agora que servirei a causa plenamente. Como disse, ainda há bondade em você.
Lua Dourada se afastou do mago deixando-o em suas próprias sombras na penumbra da caverna. Raistlin a acompanhou com o olhar enquanto podia e contemporizou sobre as ultimas palavras que ela disse. Os últimos momentos dela, que o mago tinha visto com seus olhos de ampulheta, estavam claros na mente dele, pois aquela visão também era sobre seu próprio futuro. Talvez não exista mais bondade nele, mas existe amor e estava preparado para matar aquilo que nunca tinha existido.

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