terça-feira, 12 de março de 2019

The Walking Dead nas Histórias em Quadrinhos

 

“Para mim, os melhores filmes de Zumbis não são aqueles festivais de sangue e violência com personagens estúpidos e piadas idiotas. Os bons filmes de Zumbis nos mostram o quanto somos terríveis, nos fazem questionar nossa posição na sociedade... e a posição de nossa sociedade no mundo. Eles também nos mostram sangue, violência e todas essas coisas legais... Mas, nas entrelinhas, sempre há um comentário social e preocupação maior!” 

Robert Kirkman 




The Walking Dead é uma série mensal de histórias em quadrinhos criada pelo quadrinista Robert Kirkman. Lançada em 8 de outubro de 2003 nos Estados Unidos pela Image Comics e que acabou, devido ao seu enorme sucesso, se tornando em 31 de outubro de 2010 uma popular série de TV pelo canal AMC pelas mãos de Frank Darabont e do próprio autor original. 

Aparentemente indo na onda de filmes de zumbis, principalmente os do aclamado roteirista George Romero, a revista mostra desde o inicio que o foco são os sobreviventes de uma catástrofe global que destruiu as instituições estabelecidas e colocou em xeque a humanidade como sociedade. Mas sim os vivos e o tanto que eles podem ser cruéis para sobreviver em um mundo pós-apocalíptico. 

Entretanto, não poderíamos entender o fenômeno de The Walking Dead sem compreender as novas abordagens da editora na época e principalmente sem acompanhar a trajetória do próprio autor. 


 

Robert Kirkman é um quadrinista estadunidense que saiu do meio undergrond para o mainstream, ou seja, fez com que seus trabalhos autorais nos quadrinhos ganhassem a grande mídia e teve boa repercussão com isso, pois teve total liberdade como uma grande aposta da Image Comics. Sua estreia foi com Battle Pope, seu trabalho que teve menor reconhecimento, mas logo vieram vários os sucessos, além de The Walking Dead, do qual também seria aclamado. 

Entre eles estão: sua história em quadrinhos de super-heróis chamada Invincible; o título de terror Outcast, que também virou série televisiva e Haunt com o fundador da editora chamado Todd MacFarlane. 

Image Comics passava por uma fase, também conhecida como segunda geração da editora, que para recuperar as ótimas vendas que esteve apenas em sua gênese, trouxe quadrinistas mais autorais e dando uma maior liberdade criativa para que os mesmos possam desenvolver trabalhos diferenciados e que se destaquem no mercado mainstream das histórias em quadrinhos. Essa estratégia já tinha dado certo com a editora Dark Horse anos antes e ocorreu o mesmo com a Image consagrando-a como uma das maiores dos Estados Unidos. 

Assim boa parte dos autores de quadrinhos que estavam descontentes com as amarras das grandes como a Marvel e a DC Comics puderam migrar para a Image na aposta da editora de seus próprios trabalhos e assim Kirkman decidiu colocar toda sua atenção e criatividade na época em The Walking Dead. 



Talvez a primeira coisa que podemos notar ao ler as histórias em quadrinhos é o amadurecimento gradual do autor durante a passagem das edições das revistas. Robert Kirkman era ainda muito novo quando elaborou o projeto no início dos anos 2000 para agora ser uma das melhores narrativas gráficas que temos no grande mercado dos quadrinhos. É interessante ver como a complexidade as histórias, o refinamento dos diálogos, a expansão do universo e as mudanças do seu personagem central, vão evoluindo gradativamente e junto com seu autor em arcos cada vez melhores. 

The Walking Dead em uma primeira leitura inicia com histórias bem obvias e de personagens sem muito aprofundamento e quase superficiais. O enredo desenvolve muito rápido com acontecimentos quase atropelados o que pode causar uma estranheza em quem está lendo, principalmente para quem já assistiu a série da AMC. No entanto, quando o universo vai se expandindo em quadrinho após quadrinho, temos um aprofundamento incrível dos personagens que vão se revelando cada vez mais interessantes à medida que as histórias tomam enredos mais bem elaborados e com sutilizas beirando a filosofia e crítica social impactantes. O ápice de toda essa melhora de narrativa do autor está bem catalisada no personagem principal, o policial de uma pequena cidade do Kentucky. 

O oficial Rick Grimes. 



O protagonista de The Walking Dead e o personagem que mais evoluiu nessas histórias em quadrinhos, tendo um início que, apesar de tenso, mostra todo seu bom caráter em que podemos vê-lo quase que como vítima das circunstâncias trazendo certa ingenuidade e fragilidade do personagem. Ao passar do tempo (e das edições) Rick tem um verdadeiro embrutecimento de sua personalidade fazendo-o tomar atitudes que jamais imaginávamos no início da história. Seu senso de moral se torna cada vez mais cinza ao ponto em que praticamente podemos interpretá-lo como vilão nas revistas mais recentes. Alguém em que os horrores de um mundo pós-apocalíptico foram moldando o policial aos poucos de uma maneira tão bem executada que dificilmente percebemos essas alterações ou, se percebemos, não sabemos exatamente quando isso ocorreu dando um realismo absurdo a narrativa e cumprindo brilhantemente a proposta original do quadrinista Kirkman. 

Rick Grimes amadurece na história à medida que o autor amadurece em sua narrativa que cada vez mais refinada e complexa expandindo esse mundo tomado pelos mortos vivos. Tudo interligado de uma maneira brilhantemente impar tornando o nome de Robert Kirkman em destaque entre os melhores autores de histórias em quadrinhos do seu tempo e deixando um legado de alta qualidade da nova arte para a editora Image Comics. 


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Assim o autor cumpre muito bem o que se propôs a fazer, uma narrativa gráfica diferenciada em um mundo pós-apocalíptico cheio de uma profusão de zumbis, mas que em nenhum momento deixa que as pessoas “vivas” sejam o foco da sua história.  Os momentos de heroísmo ou os atos mais cruéis e abomináveis de The Walking Dead são protagonizados pelos sobreviventes daquele mundo derradeiramente arrasado e desolado por um vírus fatídico. 

E quantos acontecimentos horrendos ocorrem nas páginas dessa história em quadrinhos... 

Somos transportados a quase presenciar e refletir sobre até onde a humanidade é capaz de cometer atrocidades em nome da sobrevivência selvagem em não apenas em cenas viscerais e escatológicas, mas também em acontecimentos que precisaram de uma coragem única de Kirkman para narrar não poupando nem o mais inocente dos personagens e nem o próprio protagonista Rick Grimes. 

Todos sofrem na mão de seu autor para que possamos questionar os valores da nossa própria humanidade e em que rumo queremos que a sociedade como um todo caminhe para o futuro refletindo o nosso próprio papel como cidadão e, principalmente, como ser humano nessa caminhada inexorável do tempo. 


 

A filosofia sutilmente implícita em The Walking Dead com uma crítica social bem equilibrada em uma narrativa cada vez mais espetacular faz com que seja uma das melhores histórias em quadrinhos da atualidade atraindo uma legião de leitores sendo muito bem sucedida em outras mídias como series televisivas, livros e ao que tudo indica agora, também em formato de filme em longa-metragem. 

As histórias em quadrinhos de The Walking Dead são recomendadas tanto para aqueles que nunca viram a série da AMC como aos que assistiram, desde que entendam a mudanças necessárias de mídia e compreendam a estranheza que o enredo pode causar nas primeiras leituras. Afinal, a série e a revistas estão praticamente em dois universos diferentes com personagens com histórias bem distintas ou exclusivos de cada veículo previamente apresentado. 


 

Uma narrativa gráfica que mostra a importância de dar liberdade criativa para seus quadrinistas não impondo muitas restrições editoriais dando aos autores todas as condições de escrever e desenhar boas histórias em quadrinhos atraindo mais público e engrandecendo ainda mais a nona arte.