sexta-feira, 30 de abril de 2021

Lobo Solitário: O Guardião do Sino

 


“Geada de Despedida” 

 

O Guardião do Sino é o quarto volume do mangá Lobo Solitário roteirizado por Kazuo Koike e com a arte de Goseki Kojima. contando a estória de Ogami Ittô, um Rônin que foi desonrado pelos planos de uma família rival e, junto ao seu pequeno filho Daigoro, decide seguir por um caminho escuro do Meifumadô como assassino de contrato enquanto prepara sua vingança contra aqueles que foram responsáveis pela sua atual desgraça. Neste capítulo o Lobo Solitário continua executando os trabalhos ao qual vem sendo contratado, mas acaba se deparando com um serviço em que encontra outra pessoa também em busca de vingança e seus propósitos são colocados a prova.  

Se você quiser saber mais sobre sua criação e seus autores leia nossa resenha O Lobo Solitário. Também temos a resenha do primeiro volume O Caminho do Assassino; do segundo volume Uma Barreira sem Portões e do terceiro volume A Estrada Branca Entre Dois Rios. Se continuar por aqui, terá uma análise crítica mais profunda sobre este quarto capítulo. 

Temos aqui um volume totalmente dedicado as missões de assassinato por contrato realizadas pelo protagonista, mas em meio as suas execuções temos mais da sociedade feudal japonesa sento explorada. Muitos aspectos do passado são abordados com muitos paralelos críticos a atualidade nipônica. No entanto, aqui parece que o objetivo também é apresentar muito como os meandros da rica e complexa cultura japonesa. 

É valido pensar que talvez seus autores já tinham uma visão (ou desejo) de que seu mangá fosse exportado à outros países. Temos um volume muito didático sobre as raízes do modo de pensar japonês com reflexões sobre a sua sociedade e cultura ao visitar um passado tão formador e ainda influenciador. Assim esta obra pode ser a porta de entrada para muitos sobre o pensamento e, talvez, até a filosofia japonesa gerando um interesse genuíno sobre o país, principalmente nos aspectos culturais. Imagino que essa seja a intenção não apenas para um ocidente, mas também para seu povo contemporâneo que desconhece seu passado. 



Tais inserções históricas são muito assertivas, pois além de ensinar um pouco sobre seu passado, também propõe refletir, e até criticar, sobre alguns aspectos culturais japoneses desmitificando muito do que está no imaginário sobre uma era cheia de duelos de honra e samurais habilidosos. Um exemplo é a abordagem de uma importante personagem que aparece no final deste volume e que merece ser comentada.  

Tal personagem aparece com tatuagens que tem um significado considerável para o enredo. Ora, já está consciente na cultura pop a ligação dos japoneses com tatuagens de técnica elaborada e misteriosa, mas pouco se conhece das suas origens e significados (embora muito se especule). Existem várias origens para tal arte e sua simbologia, mas ao que parece o mais provável é que tenha surgido na classe de comerciantes em seu desejo de exteriorizar suas riquezas e status de forma sutil (ou melhor: escondida) visto que não era bem visto, e até algumas vezes proibido, fazer demonstrações claras de riqueza e ganhos. A tatuagem seria uma maneira menos grosseira e polida de mostrar o crescimento do comerciante perante os seus de forma refinada sem que atraia atenção indesejada da classe dos samurais ou de senhores de terras feudais.  

Entretanto com o tempo isso atraiu cada vez mais pessoas de outras qualidades que começaram a dar outros significados a tatuagens ampliando suas técnicas em busca de novas simbologias. Muito se popularizou imagens religiosas, principalmente da deusa xintoísta Kanon, que representava a misericórdia perante os pecados ou crimes que a pessoa teria cometido. Essa simbologia ficou ainda mais forte depois da Segunda Guerra Mundial onde o Imperador proibiu tatuagens relegando tal arte apenas aos criminosos e, assim sendo, consagrada muita a organização mafiosa conhecida como Yakuza.    

O outro aspecto da personagem é o uso de sua nudez como técnica de combate para distrair seus oponentes podendo vencer com mais facilidade. Essa é uma famosa técnica do ninjutsu utilizada pelas Kunoichi (ninja mulher) em que exploram o exagero pudor da sociedade com o corpo feminino para desconcertar os oponentes masculinos, muitas vezes samurais, tendo certa vantagem nos combates. Os ninjas muito criticavam a sociedade em que estavam inseridos e usavam de suas normas como estratégia de luta se aproveitando dessas “amarras” sociais para vencer ou sobrepor o inimigo. 



Nos aspectos artísticos tivemos até agora muita competência no desenho de localidades com traços arrojados sobre imagens arquitetônicas em construções de cidades, templos e palácios feudais. No entanto, aqui temos um maior cuidado e foco em apresentar também paisagens naturais do Japão mostrando alguns enquadramentos belíssimos sobre ambientes mais selvagens do arquipélago. Algumas dessas artes são tão incrivelmente belas que a vontade é de ampliar e emoldurar tais paisagens como verdadeiros quadros de papel e nanquim. A narrativa gráfica de Kojima não é apenas apurada em contar estórias, mas também encantadora ao se admirar visualmente tornando o que se poderia ver apenas como pano de fundo, mas aqui também sujeito de apreciação.  

Deve ser destacado também que a arte sequenciada do mangaká volta a abordar os quadrinhos mudos, mas aqui com extrema excelência. Realizar uma narrativa sem falas (ou melhor sem escrita de diálogos ou narração) não é uma tarefa tão fácil como aparenta. Não é apenas retirar tudo que é escrito e deixar apenas as imagens desenhadas, pois tais quadros tem que contar algo. E isso é feito com muita habilidade e competência, pois temos passagens profundas e até reflexivas sendo contadas sem apoio algum das palavras, mas sem perder em momento algum da complexidade narrativa tocando, talvez até mais, o leitor. 

São em momentos assim que percebemos de Lobo Solitário não apenas como mais uma história em quadrinhos para entretenimento, mas sim também como obra da nova arte que tem comprometimento com técnicas que buscam uma apreciação mais apurada da beleza e forma mais refinada de narrativa. É incrível como a cada volume se faz mais bem entendido a aclamação que Lobo Solitário tem e o apelo que o mangá adquiriu pelo mundo derrubando muitas barreiras impostas não apenas geográficas, mas ao preconceito que toda arte sequenciada tem quanto ao seu reconhecimento. Koike e Kojima, nessa obra, elevam o nível de apreciação não apenas das novelas gráficas, quadrinhos ou mangás, mas também como produção artística.  

 

“A última geada da primavera havia coberto todo o campo após a queimada...essa geada de despedida prenunciava a mudança de estação. Mas não para pai e filho, cujo destino havia apagado o amanhã para os dois...” 


Leia também a resenha do próximo volume...  

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Black Hammer: Era da Destruição Parte II


Era da Destruição parte II é o último arco (e encadernado) de Black Hammer, uma história em quadrinhos criada e roteirizada por Jeff Lemire com artes de Dean Ormston e cores de Dave Stewart publicada pela Dark Horse em 2016 e trazida ao Brasil pela editora Intrínseca à partir de 2018. Nesse derradeiro volume temos a finalização de toda o enredo da fazenda. O fechamento das pontas soltas na trama e o desenvolvimento de todos os mistérios que já tinham sido esclarecidos, mas que precisavam de uma resolução. Assim finalmente temos as consequências de tudo o que ocorreu antes em uma conclusão anticlimática e que pode ser um tanto indigesta para a maioria dos leitores.   

Para maiores informações sobre os encadernados anteriores, leia nossa resenha Black Hammer: Origens Secretas, Black Hammer: O Evento e Black Hammer: Era da Destruição Parte I. Se você também quiser saber mais sobre a criação desta brilhante obra e de seus autores leia também Black Hammer: Apologia ou Desconstrução dos Super Heróis?    

Iniciando esse encadernado temos uma estória fora (de certa forma) da trama principal com a arte diferenciada de Rich Tommaso. Um quadrinista francês ganhador do Eisner em 2008 por “Melhor Trabalho Inspirado na Realidade” com Black Star: A Verdadeira História de Satchel Page. Aqui seus traços estilizados dão um sabor inesperado ao título e marcam muito bem a saída do enredo central indo por um outro caminho que para um leitor menos atendo pode parecer duas edições que servem apenas para enrolar a estória enquanto se prepara para uma possível finalização épica. 



Entretanto, acredito, que esse não é o caso. Tal início conta sobre a tentativa do Capitão Weird em voltar para a realidade depois dos eventos bombásticos do encadernado anterior (primeira parte de Era da Destruição) onde ele encontra personagens de histórias em quadrinhos que; ou ficaram apenas na imaginação dos seus autores não aparecendo em publicação alguma; ou tiveram uma participação bem menor que o planejado nas estórias que surgiram. É uma estória de contar estórias, uma meta linguagem provavelmente em homenagem ao Homem Animal de Grant Morrison ou à uma certa biblioteca no Sonhar de livros que nunca foram escritos em Sandman de Neil Gaiman. Mas se analisarmos bem tudo que ocorre tá a última edição deste quarto volume podemos interpretar que pode ser muito mais.  

Por enquanto vamos apenas destacar que é sempre bom ver quando Weird vira o protagonista, pois gera estórias estranhas, mas cheias de exploração e com muita imaginação. São sempre picos criativos, mas o enredo principal tem que caminhar e depois do “frescor” deste início temos que voltar a Spiral City e para a conclusão desta saga. E essa volta, também dos artistas originais, marcam uma cidade agora representada com muito mais detalhes... e decadente.  

Isso não é à toa. Spiral City agora pode representar não mais uma cidade fictícia de super heróis, mas um local bem real em que os sonhos e devaneios de seres poderosos cruzando os seus não tinha mais lugar. Talvez seja uma representação de que aquelas histórias em quadrinhos que tanto amamos não tem mais sentido no mundo atual e pessimista ao qual vivemos. Uma hora amadurecemos e devemos deixar para trás toda aquela ingenuidade, por mais nostálgica que seja.  

Para isso Lemire volta ao início. Não cronologicamente, mas um retorno ao enredo ou ao estado inicial das coisas. Novamente os super heróis tem que se reunir e descobrir o que houve. Abandonar uma vida comum e voltar ao extraordinário para resolver os mistérios de como foram parar nesta situação mais uma vez. No entanto, agora também existe a ameaça do retorno do seu grande algoz... O Antideus trazendo certa urgência a demanda atual.  



Muitas são as críticas que justamente nessa reta final voltamos a estaca zero e concordamos com todas elas. Mas é interessante perceber que agora, conhecendo bem todos os protagonistas, o leitor acaba se identificando ainda mais e torcendo pelos heróis de uma maneira mais próxima e intima. O que leva a questão que talvez Black Hammer não seja uma História em Quadrinhos de grandes e complexas tramas com enredo bem elaborado e impactante. Talvez o objetivo do autor desde o início seja contar uma estória de personagens. Talvez seus protagonistas sejam mais importantes do que o próprio enredo e que tudo não passe apenas de pano de fundo para que vejamos tais super heróis sendo desenvolvidos enquanto passam pelos obstáculos da trama. O que realmente interessa aqui é o que acontecerá com eles e como a relação entre os mesmos irá se desenrolar daqui para frente.  

O iminente confronto com o Antideus também traz um paradoxo terrível ao grupo. Sua volta as memórias e condição de super heróis é justamente o que trará o vilão de volta, pois um equilíbrio deve ser mantido e se tivermos super poderes do lado do bem, algo poderoso também se levantará do lado maligno.  

Assim teremos mais um dilema a ser resolvido e talvez seja o maior anticlímax desta saga. Tudo é resolvido não com combate épico final, mas de uma maneira simples, porém dolorosa aos super heróis. Mais uma vez temos várias críticas a forma de como Black Hammer conclui seu enredo, mas é inegável que podemos interpretar e refletir sobre esse final de várias maneiras.  



Ao voltar a fazenda abandonando o super heroísmo, para que deste modo o inimigo não retorne, pode ser visto como uma desistência e de certa forma... uma derrota. É uma interpretação muito plausível e com suas razões bem sólidas. Todo esse arco parece indicar um amadurecimento dos personagens que deveriam se movimentar diante da apatia da vida pacata. Parecia que a ideia era ser contra o conformismo que nos acostuma a situações de tal maneira que não queremos mais mudanças; não por serem ruins, mas por puro comodismo. Assim voltar a fazenda parece uma atitude reacionária de um retorno derrotista a estagnação.  

Para os personagens talvez realmente seja, mas para a estória pode ser uma forte mensagem que tudo muda e que devemos deixar as coisas do passado no passado. Em uma obra que homenageia as histórias de quadrinhos de super heróis, talvez a mensagem seja que não faz mais sentido aqueles personagens que nunca envelhecem ou morrem causando reinícios infindáveis nas linhas cronológicas de seus próprios universos afim de que suas origens sejam mais uma vez recontadas e adaptadas para uma nova época ao invés de simplesmente criarem novos personagens que substituam os antigos. Talvez a intensão dos autores seja mostrar que esse apego nostálgico aos mesmos protagonistas prejudica a narrativa da estória a ser contada limitando muito seu enredo e deixando o leitor afastado de novas experiencias com a nova arte sequenciada. Afinal são apenas os velhos super heróis que voltam a fazenda deixando em Spiral City a mais jovem super heroína cuja a presença não traria de volta o antigo vilão de um remoto passado.  

Existe um sentimento muito forte de descanso merecido nas ultimas páginas da publicação. Algo como se fossem veteranos voltando de uma guerra avassaladora como heróis ao qual tudo que precisam agora é justamente uma vida pacata para enfim... se acomodar e passar seus derradeiros dias. Muito foi exigido deles e, enfim, agora eles podem colher os frutos de uma boa vida comum. Temos então um dos temas mais trabalhados por Lemire em seus materiais, incluindo neste desde o início, uma ode a vida pacata no campo. A cidade interiorana que é o destino perfeito para que se cure os traumas do passado e uma a aposentadoria dos grandes homens e mulheres.  



Assim, apesar de muito controverso, vemos um final muito significativo para uma saga que tinha apenas como propósito homenagear as histórias em quadrinhos de super heróis e acaba por ser bem mais profunda que normalmente vemos em tais estórias. Uma reflexão sobre as responsabilidades que adquirimos em uma árdua e longa vida de batalhas constantes, sejam externas ou internas e a chance de conseguir um derradeiro e merecido descanso depois de todas as demandas e desventuras que o destino nos reservou. Black Hammer é homenagem, crítica e reflexão não apenas aos quadrinhos, mas a nós mesmos seus leitores. Com certeza um dos melhores materiais já produzido pelos amantes da nova arte e muito bem vindo a qualquer tipo de leitor.