domingo, 31 de janeiro de 2021

Lobo Solitário: O Caminho do Assassino


                                           “Alugo minha espada, alugo meu filho” 


O Caminho do Assassino é o primeiro volume do mangá Lobo Solitário que conta a estória de Ogami Ittô, um Rônin que foi desonrado pelos planos de uma família rival e, junto ao seu pequeno filho, decide seguir por um caminho escuro como mercenário enquanto prepara sua vingança contra aqueles que foram responsáveis pela sua atual desgraça.  Originalmente publicano em 1970, mas retratando o período de feudalismo do Japão escrita por Kazuo Koike e desenhada por Goseki Kojima. Uma das mais reverenciadas histórias em quadrinhos japonesas de todos os tempos. Se você quiser saber mais sobre sua criação e seus autores leia minha resenha anterior O Lobo Solitário. Se continuar por aqui, terá uma análise crítica mais profunda do primeiro volume.

Assim no primeiro volume temos o protagonista percorrendo sua estrada da amargura tão desolado que é capaz de usar o próprio filho infante em suas estratégias de combate e missões como guerreiro de aluguel. Apenas disso, temos um personagem ainda preso a códigos de ética e moral, tanto que apenar de abandonar o Bushido (código de honra dos samurais) ele vê a necessidade de ainda trilhar por um outro código de conduta próprio, o tal Caminho do Assassino.

A primeira questão a ser percebida nesse volume. A sociedade japonesa é enraizada em seus códigos e leis, principalmente em períodos feudais; e aqui temos críticas diretas a esse sistema ordeiro.  Talvez não aos códigos de conduta em si, mas a hipocrisia daqueles que dizem segui-los.  Ora, temos um protagonista desgarrado que não é muito além de um matador de aluguel habilidoso que carrega seu filho em seus trabalhos e toda vez que encontra samurais (ou nobres) e é colocado em comparação aos mesmos a estória mostrasse que aquele vagabundo é muito mais honrado que os que se dizem protetores e mantedores da lei e ordem. 



Temos assim uma clara crítica a classe samurai onde o leitor é convidado a refletir sobre a verdadeira honra quando deparado a pessoas comuns (e as vezes oprimidas) agindo com mais retidão que os agentes do governo. Isso parece ocorrer devido ao declínio dos Samurais como uma casta guerreira que sem as glorias das guerras do passado acabaram confundindo honra com orgulho se perdendo na arrogância de uma vida sem causas para lutarem.  

Não há como entender como esses formidáveis guerreiros chegaram a esse pondo sem entender o período histórico em que o mangá se passa. A Era Edo (1603 à 1868) foi um período de transformações radicais no Japão em que o shôgun (comandante militar) chamado Tokogawa Ieyasu finaliza o processo de unificação do Japão e toma o controle total para si, fazendo até mesmo o Imperador não mais do que seu refém. Esse Estado sob um só comando acabaria com as constantes guerras civis e os confrontos bélicos não mais teriam espaço.  

Entretanto, onde não havia mais guerras abertas entre os clãs e os daimyô (senhores feudais) o vácuo foi preenchido pelas intrigas e tramas às escondidas. Um palco propício para os assassinos e espiões que viajavam por teias escusas traçadas pela nobreza ociosa que planejavam seus interesses agora as sombras de seus palácios e comandavam por palavras sinuosas de suas cortes com o cuidado de não atraírem atenção demais dos Tokugawa e seus agentes.  

Há, então, um claro ressentimento do governo que podemos perceber em cada página desse volume seja pelos antigos senhores de clãs bem como a população em geral. Mas esse sentimento não traz, até aqui, palavras de golpe aos sussurros, mas uma disputa entre feudos pelas graças do shôgun, ou ao menos, para que tramas para que continuem despercebidos do mesmo.  

É justamente nesse clima de tensão que nosso protagonista prospera como matador de aluguem vendendo seus serviços (e de se filho) para quem possa pagar, mantendo os dois ao mesmo tempo que vai fazendo fama para que finalmente possa se voltar exclusivamente a sua vingança. No entanto, esse não é um caminho agradável e fácil, pois sua habilidade é testada à todo momento com quebra de contratos e muitos “clientes” que desejam seu “total silencio” sobre as tarefas desempenhadas. O Lobo Solitário tem que sempre se manter atento a todo tipo de traição e buscar estar à par de todas as implicações e motivos desses contratos. 



Assim o mangá mostra seu protagonista antes de tudo um estrategista eficaz onde não apenas se vale da inteligência e preparo para conseguir concluir suas missões, mas também para se manter vivo (e o filho) de todas as redes de intriga que cercam todos seus contratantes e alvos.  

Para isso Koike conta com um roteiro muito bem elaborado e inteligente com personagens, apenas de passageiros, sendo desenvolvidos o suficiente para criar tramas sagazes e ainda criticando vários estereótipos que costumam a contes das histórias em quadrinhos de samurais, também chamados de gekigá (mangá para adultos). No entanto, não temos só intriga, pois eventualmente o protagonista chega a seu objetivo ou algo inesperado ocorre forçando o combate e temos aqui a oportunidade do talento máximo de seu desenhista. 

Kojima é um mangaká de extrema habilidade dando as lutas um movimento e velocidade impar que é muito bem aproveitada pelo enredo cheio de técnicas marciais secretas e estilos de combate individuais muito distintos. A retratação dos movimentos é tão importante como as armas utilizadas que chegam a ter importância narrativa como a Dotanuki, espada usada pelo protagonista, que se difere das demais sendo mais pesada idealizada não para os duelos que os outros samurais na estória estão acostumados, mas sim para guerra. Aqui, mais uma vez, persiste a crítica do autor em mostrar o Lobo Solitário não apenas com “a verdadeira honra”, mas portando estilo de lutas e armas que remontam ao samurai guerreiro em contraste ao duelista com suas espadas refinadas, mas frágeis. Essa narrativa não seria possível sem um desenhista talentoso. 

 


O resultado desse primeiro volume é que já podemos apreciar os motivos que levaram o Lobo Solitário a ser uma obra tão aclamada, tanto no oriente como no ocidente, onde um mangá que poderia ser apenas de combate e lutas se mostra com tramas envolventes e reflexões válidas dos autores ao passado da própria sociedade bem como uma sutileza narrativa refinada que consegue retratar um período tão conturbado de uma maneira compreensível e muito prazerosa sem deixar que temas pertinentes sejam ofuscado pelas elaboradas cenas de ação.  Assim gerando um protagonista profundo com vários tons cinzentos e que, apenar de deixar todas as suas falhas bem claras, podemos compreender muito bem suas motivações e até ter uma enorme empatia por sua árdua demanda.  

 

“De hoje em diante, o seu pai viverá como um assassino! Em uma estrada cheia de sangue e cadáveres. Matança e crueldade, pois a única maneira de atingir assassinos é trilhar o caminho dos assassinos...” 


Leia também a resenha do próximo volume...  

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