sábado, 30 de janeiro de 2021

Black Hammer: Origens Secretas



Origens Secretas é o primeiro arco (e encadernado) de Black Hammer, uma história em quadrinhos criada e roteirizada por Jeff Lemire com artes de Dean Ormston e cores de Dave Stewart publicada pela Dark Horse em 2016 e trazida ao Brasil pela editora Intrínseca em 2018. Conta a estória de um grupo de super heróis que ao enfrentar uma ameaça de poder cósmico chamada de Antideus em uma ocasião nomeada na revista como O Evento. Os protagonistas acabam parando em uma estranha fazenda de uma pequena cidade onde, não podendo sair, assumem a identidade de uma família normal do interior dos Estados Unidos. 

É sobre essa família disfuncional a maior parte do enredo, principalmente nesse primeiro arco que usa a alegoria das famosas estórias de origens de super heróis para apresentar seus personagens. No entanto, tais protagonistas já são aprofundados em cada uma das seis revistas deste primeiro encadernado bem como a estória não deixa de evoluir por meio deles ou de acontecimentos tudo muito bem amarrado por uma narrativa muito envolvente e principalmente que o leva a ter uma identificação profunda com qualquer um dos personagens. 

Lemire já era famoso por fazer estórias bucólicas devido, principalmente, à sua própria criação no campo. Entretanto ao trazer temas como a pacata cidade do interior, a vida na fazenda e uma família cheia de segredos e problemas; ele acaba trazendo uma identificação profunda ao leitor bem maior que a maioria das revistas de super herói e esse é um dos maiores pontos positivos em Black Hammer. Mas para isso o argumentista tem que desenvolver muito seus protagonistas mostrando várias camadas de suas personalidades ao ponto que cada um deles tenha sua própria história e questões bem abaixo da superfície. Assim não poderíamos fazer uma resenha de Origens Secretas se não focássemos principalmente em seus protagonistas.   

Se você estiver procurando uma resenha sobre a obra em si e como ela foi escrita, talvez seja melhor ler primeiro minha outra análise sobre essa história em quadrinhos chamada Black Hammer: Apologia ou Desconstrução dos Super Heróis? Onde eu analiso como os autores, como foi concebida a obra e seus temas principais a fim de avaliar se compensa ou não sua leitura. Agora se você está procurando uma resenha critica focada no primeiro encadernado, continue a leitura desta resenha.  



Os dramas familiares são o principal recurso narrativo para uma identificação direta com esses personagens. Tais problemáticas existem devido, claro, ao fato que esses heróis não serem um grupo já estabelecido antes do Evento, mas sim tinham se unido momentaneamente para derrotar a ameaça derradeira. Essa relação forçada, como muitas famílias se sentem, leva o roteiro de Origens Secretas dando espaço a apresentação de cada personagem e como o mesmo se relaciona tanto com os outros como esse novo mundo (e condição) que o cerca.   

Cada um dos protagonistas é inspirado em um (as vezes mais de um) herói de fases clássicas dos quadrinhos de grandes editoras, como Marvel DC Comics e são apresentados cada um em uma edição que tem sua narrativa e capa fazendo homenagem a era e estilo de cada inspiração.  



Talvez o principal personagem seja Abrahan Slam um corajoso jovem que teve sua entrada no exército barrada por ser fraco demais e se tornou um combatente do crime depois de muito treinamento, principalmente pelo Boxe. Inspiração clara em Capitão América e, não tão óbvia no Demolidor, é, na verdade, uma homenagem a todos heróis pulps. Agora velho e com a carreira de super herói em declínio, não é difícil entender suas razoes para se acomodar a nova condição e preferir viver na Fazenda como um patriarca (avô) desta família. Essa é literalmente sua aposentadoria e é o personagem que mais bem se adaptou à nova realidade. Uma alegoria ao herói cansado e ex-combatente que depois de ver tudo o que viu se volta para a vida no campo buscando a tranquilidade que nunca teve. 

A Menina de Ouro era a garotinha Gail Gibbons abençoada pelos poderes místicos do mago Zafran (clara referência a Shazan) se tornando uma das super heroínas mais bem quistas pela população. Combatendo os super vilões por décadas enquanto ela envelhecia, mas sua contraparte poderosa não. O problema é que quando chegou em Black Hammer então não conseguiu mais se transformar ficando presa no corpo de uma criança de apenas 9 anos mesmo tendo aproximadamente a idade real 50. Em uma jaula anacrônica ela não consegue se adaptar a vida infante, como ir a escola, por exemplo e quer viver as experiencias plenas de uma adulta como realmente é, causando várias situações constrangedoras durante a estória. Uma clara referência a geração de crianças e adolescentes que querem crescer rápido demais não aceitando a vida infantil e buscando sua própria identidade e respeito em atitudes que julgam ser adultas.  

Barbalien, o “bárbaro alienígena” um marciano metamorfo inspirado no Ajax ou Caçador de Marte da Liga da Justiça. Tal como sua contraparte da DC Comics, foi policial em seu disfarce na Terra sempre escondendo sua origem. Está aqui um dos personagens mais profundos da publicação. A analogia que é feita dele esconder seu o fato de ser um marciano é intimamente ligado à outro segredo sobre ele que o personagem também esconde, mas se vê cansado e desejoso de se revelar ao mundo. Sentimento compartilhado por todas as pessoas que são obrigadas a esconder o que são verdadeiramente por medo da reação das pessoas em uma sociedade cheia de preconceitos em que vivemos. 



Madame Libélula é uma personagem que pode, à primeira vista, ser encarada como referência a super heroínas como Ravena, mas é mais provável ser uma homenagem as antigas histórias em quadrinhos de terror. Toda a narrativa da revista que a apresenta é inspirada nessas estórias a mostrando como uma bruxa amaldiçoada ligada inexoravelmente à uma cabana sombria (representação das HQs Casa dos Mistérios e Casa dos Sussurros). Possuidora de uma imagem enigmática e caráter de tendencia não muito definida como eram essas estórias. Faz uma alusão as bruxas reais e ao preconceito machista e religioso que sofriam, mas na organização da família representa a mãe fazendo uma reflexão profunda com seu papel visto que é encarada como uma pária pelos outros. Talvez seja a personificação do conflito da mulher que ou se entrega a família ou busca seus próprios objetivos sendo excluída pelos demais.  

Capitão Weird representa as Histórias em Quadrinhos de ficção científica sendo um astronauta e cientista que literalmente viaja entre realidades ignorando as leis do espaço e tempo. Isso é demostrando na revista artisticamente onde o personagem literalmente viaja entre os quadros demostrando suas habilidades, mas também muita confusão por nunca ter clareza em que lugar e tempo realmente está levando sua mente a uma loucura atemporal e não espacial... ou seria ele o único realmente são? Causa estranheza nos demais (daí o nome Weird), mas como descobridor da chamada “Parazona”, é o mais próximo de ter alguma ideia de como sair daquela situação onde todos se encontram.  

Por fim temos o companheiro do Coronel, o robô Talk Walk que estende sua condição de ajudante para toda a família sendo uma alegoria à “empregada” que nunca tem seu devido reconhecimento. Importante tanto para as experiencias do Coronel Weird tendo mais clareza de como resolver o problema da realidade prisão em que se encontram (sendo o único que realmente não desistiu de escapar) como para a manutenção dessa família disfuncional. Único que realmente não pode aparecer em público para o disfarce ser mantido o que também gera reflexões de como são tratados aqueles que nos prestam serviços que a sociedade não dá seu devido valor e importância.   




Tais protagonistas além de trazerem profundidade a estória, cada qual com seu questionamento, e estreitarem a relação do leitor com a revista; por eles temos um avanço calmo pelo enredo que, cheio de mistérios, vai de revelando em um ritmo constante e entregando exatamente o suficiente para manter o interesse. Essa narrativa faz com que leiamos o encadernado sempre focados no desenrolar da estória sem perder o interesse ou ficarmos cansados nem por um momento 

Isso se deve muito a narrativa bem planejada e equilibrada de Lemire que consegue entregar uma história em quadrinhos de mistério bem escrita onde ao mesmo tempo que não entrega demais, não cai no atual clichê de não entregar quase nada deixando o leitor frustrado. Esse equilíbrio também está presente na forma que ele apresenta os protagonistas onde cada um tem sua função não roubando a cena do outro e também não monopolizando a narrativa de uma forma que o enredo a ser contato não fique esquecido ou em segundo plano. 



O resultado disso é um encadernado aparentemente voltado a estória de origem de super herói que estamos tão saturados, mas aqui não fica cansativo e, na verdade, muitas vezes até esquecemos que se trata de apresentação de personagens onde vamos descobrindo gradativamente sobre os protagonistas ao mesmo tempo que vamos revelando todo esse novo universo de maneira natural e até dinâmica nos fazendo apreciar tudo que fez de Black Hammer ser o ganhador, merecidamente, do prêmio Eisner Awards de Melhor Série Original em 2017. 

Uma das minhas melhores leituras nos últimos anos e uma obra tão bem construída que mistura o melhor do universo de super heróis mainstream com a narrativa mais underground de histórias em quadrinhos autorais. E tudo isso sem deixar que as referências deixem a leitura viciada e carregada demais para ser apreciada e compreensível pelos leitores que nunca leram qualquer revista de arte sequenciada na vida.  

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