Sempre temos certa dificuldade em analisar uma obra
clássica, seja pelas emoções envolvidas ou por buscar a sensibilidade de
perceber sua repercussão entre seus leitores mais fieis ou até mesmo ao grande
público. O Lobo Solitário com certeza é uma dessas obras cujo seu impacto foi
sentido não somente no Japão, onde foi concebido, mas também no ocidente. Ultrapassando
as fronteiras orientais sendo aclamada junto a outras obras primas da nona arte
em todo o ocidente influenciando também o cenário da cultura pop mundial.
Lobo Solitário (Kozure
Ôkami) é um mangá (histórias em
quadrinhos japonesas) ou, mais especificamente, um gekigá (quadrinhos mais complexos e dramáticos voltados para
adultos) que foi publicado em 1970 na revista de antologias Action e seu enredo se passa na Era Edo (1603 à 1868). Criado pelo
argumentista Kazuo Koibe e pelo artista Goseki Kojima que narra a estória do Rônin (Homem onda ou à deriva, ou seja,
um samurai sem mestre) chamado Okami Itto (notem que seu sobrenome se parece
com Ôkami, ou seja, lobo em japonês)
que perdeu seu prestígio, perante o shôgun
(comandante militar), e tendo toda a sua família desgraçada por um plano do
clã rival, Yagyû, para obterem sua posição de Kogi Kaishakunin (oficial da morte ou carrasco).
A Era Edo,
também conhecida como Tokugawa Bakufu, marca
um período dramático do Japão onde temos a ultima resistência dos japoneses à
grande abertura ao mundo ocidental que ocorrerá na Restauração Meiji (Era
seguinte). O Período Tokugawa é caracterizado pela unificação do Japão, que antes
era dominado por vários daimyô (senhores
feudais) fraguimentando o país, gerando quase uma guerra civil por disputas
territoriais e diminuindo o poder do Imperador. Logo no inicio do século XV,
depois de várias revoltas e golpes centralizadores, o shôgun Tokugawa Ieyasu derrotou seus rivais se tornando o líder
militar absoluto e unificando o Japão, embora ainda minando o poder do
Imperador que era na melhor das hipóteses, seu refém.
Tokugawa coloca em prática seu plano de fechar o Japão
para toda influencia estrangeira (provocando até perseguições religiosas, como
a que sofreram os Jesuítas e Budistas, no arquipélago) e acabam pondo fim as
disputas territoriais gerando uma paz relativa e frágil em seu país. É nesse
período que temos o crescimento da imagem dos samurais (guerreiros na nobreza
feudal japonesa que seguiam um forte código de ética chamado Bushidô) que, sem ter utilidade clara
nos conflitos, acabam viajando pelo império em busca de desafiar outros mestres
em duelos de esgrima. Talvez este seja o auge das técnicas de espada japonesa (Kenjutsu e, posteriormente, Kendô) que são ministradas em academias
por todo o mundo.
Também
temos na Era Edo a proliferação dos Rônin ou samurais que, por algum motivo,
não tinham mais um mestre para seguirem. Assim acabavam que por muitas vezes
vagando quase como andarilhos que hora são marginalizados e hora são temidos pela
população.
Ogami Itto, o protagonista de Lobo Solitário, é
justamente um desses Rônin, mas que
viaja pelo Japão como assassino de aluguel a fim de levantar recursos para sua
vingança contra a família Yagyû que o colocou em desgraça junto com seu filho e
único sobrevivente dos Ogami, o pequeno Daigoro, que dá um toque todo especial
na narrativa dentro e fora do enredo. Ogami abandonou o Bushidô (Caminho do Guerreiro) e agora segue o famigerado Menfumadô (Caminho Errante do Mundo dos
Mortos) e trilha com seu filho em uma estrada cheia de ódio e violência
provocando ótimas cenas de ação e combates com uma beleza gráfica que mostram
todo o talento de seus mangaká (autores
de histórias em quadrinhos japonesas).
Koike Kazuo é um dos mais premiados criadores de
quadrinhos, justamente por causa de seu trabalho em o Lobo Solitário. Autor de
contos, textos teatrais e poesia assim como alguns roteiros de filmes chegando
a escrever as seis adaptações cinematográficas da saga de Ogami Itto a partir
de 1972, que lhe abriu as portas como roteirista de filmes no futuro, mostrando
sua famosa versatilidade. Logo, por exemplo, acabou criando o mangá Crying Freeman com o artista Ikegami
Ryoichi e cuidou da sua versão cinematográfica nos Estados Unidos. Atualmente
Koibe leciona em um curso universitário criado por ele mesmo chamado Gekiga Sonjuku onde já estudaram vários
famosos produtores de histórias em quadrinhos japoneses como Takahashi Rumiko
criadora de Ranma e Inu-Yasha.
Koibe usa todo esse contexto histórico como pano de fundo
para contar a sua história ficcional, pois apesar de ter bases em registros
antigos do Japão (onde muitos historiadores usam como ferramenta de estudo o
Lobo Solitário, principalmente pelo seu fiel retrato da sociedade japonesa na Era Edo), ainda é uma ficção com
personagens inventados e caminhos diferentes da História. Assim temos um Ogami Itto que nunca existiu deste modo, mas temos
um clã Ogami que realmente caiu em desgraça em 1655 e a ascensão da família Yagyû
em contrapartida. Justamente para reforçar essa verossimilhança que o
argumentista traz um dos desenhistas mais realistas e dedicados que tinha em
seu alcance.
Kojima Goseki é um artista autodidata que, logo após
terminar o colegial, ganhava a vida pintando cartazes de filmes, iniciando seus
trabalhos nos quadrinhos somente em 1950 em um Japão em crise pela Segunda
Guerra Mundial. Assim realizou muitos trabalhos menores até finalmente alcançar
o seu primeiro mangá de grande visibilidade
chamado Dojinki em 1967, mas se consagrou apenas com a expansão do mercado
japonês na década seguinte trabalhando arduamente no Lobo Solitário.
O mangaká Kojima,
apensar de ser um novato na época, já havia trabalhado em um conhecido mangá de samurai chamado Kubikiri Asa
quando foi chamado para fazer o Lobo Solitário. Tinha um talento para desenhos
realistas que estavam na proposta de Koibe com combates quase cinematográficos
e com traços visuais detalhistas que impressionam até os dias atuais. A dupla
teve uma iteração impar conciliando perfeitamente o texto ao desenho e trazendo
uma narrativa dinâmica e integrada. O sucesso foi tanto que chegaram a receber
o titulo de “dupla de outro”. A partir dos anos 90 Kojima se dedicou a realizar
adaptações dos filmes do consagrado cineasta Akira Kurosawa para os mangás, tarefa ao qual se empenhou até
janeiro de 2000 quando infelizmente chegou a falecer.
Logo, um personagem tão profundo como Ogami Itto em um
contexto historicamente rico que apenas engrandecem uma narrativa complexamente
envolvente e que ainda conta com desenhos impecáveis, acabam tornando o Lobo
Solitário uma história em quadrinhos de enorme sucesso no Japão gerando vários
filmes para o cinema e influenciando toda uma geração de mangaká posteriores tanto na narrativa gráfica como em enredos.
Não
era de se espantar que o mangá acabasse conquistando inexoravelmente o mundo
ocidental, impressionando seus leitores e sendo cultuado por quadrinistas
europeus e estadunidenses. Sua influencia na cultura pop pode ser sentida até
os dias de hoje nos filmes, livros e quadrinhos que trazem uma “orientalização”
não apenas dos temas, mas também das formas narrativas. Talvez o maior exemplo
desse impacto esteja no estilo e traço do famoso argumentista e desenhista Frank
Miller.
Frank Miller é um dos mais cultuados autores de história
em quadrinhos de todos os tempos e normalmente é chamado de um dos três maiores
quadrinistas, juntamente com Alan Moore e Neal Gaiman. É fácil perceber a
influencia de Lobo Solitário nas obras do autor estadunidense como na novela
gráfica Ronin, homenagem declarada do autor. No entanto, podemos perceber essa
influencia, se olharmos bem, em seus outros trabalhos mainstrem como quando escreveu os personagens Batman (da DC Comics), Wolverine e Demolidor (ambos
pela Marvel Comics).
Todo esse sucesso comercial fez com que o Lobo Solitário
se tornasse um dos mais longevos mangá
chegando a impressionante marca de mais de 8400 páginas fascinantes e com um
final que não se rendeu à própria fama tendo um desfecho imprevisível sendo
finalizado pela decisão dos mangaká e
não por falta de vendas ou perda do interesse do público por se tornar
demasiadamente arrastado.
Podemos sim concluir que o Lobo Solitário é a obra
definitiva das histórias em quadrinhos japonesas e não apenas influenciou os mangá, mas também redefiniu a forma de
contar histórias no ocidente seja em quadrinhos, livros ou filmes, como já
mencionado, tornando a vingança e a busca por justiça de um homem contra o
mundo um dos temas mais recorrentes e apreciados pela cultura pop mundial.