quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O Lobo Solitário



Sempre temos certa dificuldade em analisar uma obra clássica, seja pelas emoções envolvidas ou por buscar a sensibilidade de perceber sua repercussão entre seus leitores mais fieis ou até mesmo ao grande público. O Lobo Solitário com certeza é uma dessas obras cujo seu impacto foi sentido não somente no Japão, onde foi concebido, mas também no ocidente. Ultrapassando as fronteiras orientais sendo aclamada junto a outras obras primas da nona arte em todo o ocidente influenciando também o cenário da cultura pop mundial. 

Lobo Solitário (Kozure Ôkami) é um mangá (histórias em quadrinhos japonesas) ou, mais especificamente, um gekigá (quadrinhos mais complexos e dramáticos voltados para adultos) que foi publicado em 1970 na revista de antologias Action e seu enredo se passa na Era Edo (1603 à 1868). Criado pelo argumentista Kazuo Koibe e pelo artista Goseki Kojima que narra a estória do Rônin (Homem onda ou à deriva, ou seja, um samurai sem mestre) chamado Ogami Itto (notem que seu sobrenome se parece com Ôkami, ou seja, lobo em japonês) que perdeu seu prestígio, perante o shôgun (comandante militar), e tendo toda a sua família desgraçada por um plano do clã rival, Yagyû, para obterem sua posição de Kogi Kaishakunin (oficial da morte ou carrasco). 



Era Edo, também conhecida como Tokugawa Bakufu, marca um período dramático do Japão onde temos a última resistência dos japoneses à grande abertura ao mundo ocidental que ocorrerá na Restauração Meiji (Era seguinte). O Período Tokugawa é caracterizado pela unificação do Japão, que antes era dominado por vários daimyô (senhores feudais) fragmentando o país, gerando quase uma guerra civil por disputas territoriais e diminuindo o poder do Imperador. Logo no início do século XV, depois de várias revoltas e golpes centralizadores, o shôgun Tokugawa Ieyasu derrotou seus rivais se tornando o líder militar absoluto e unificando o Japão, embora ainda minando o poder do Imperador que era na melhor das hipóteses, seu refém. 

Tokugawa coloca em prática seu plano de fechar o Japão para toda influencia estrangeira (provocando até perseguições religiosas, como a que sofreram os Jesuítas e Budistas, no arquipélago) e acabam pondo fim as disputas territoriais gerando uma paz relativa e frágil em seu país. É nesse período que temos o crescimento da imagem dos samurais (guerreiros na nobreza feudal japonesa que seguiam um forte código de ética chamado Bushidô) que, sem ter utilidade clara nos conflitos, acabam viajando pelo império em busca de desafiar outros mestres em duelos de esgrima. Talvez este seja o auge das técnicas de espada japonesa (Kenjutsu e, posteriormente, Kendô) que são ministradas em academias por todo o mundo. 



Também temos na Era Edo a proliferação dos Rônin ou samurais que, por algum motivo, não tinham mais um mestre para seguirem. Assim acabavam que por muitas vezes vagando quase como andarilhos que hora são marginalizados e hora são temidos pela população. 

Ogami Itto, o protagonista de Lobo Solitário, é justamente um desses Rônin, mas que viaja pelo Japão como assassino de aluguel a fim de levantar recursos para sua vingança contra a família Yagyû que o colocou em desgraça junto com seu filho e único sobrevivente dos Ogami, o pequeno Daigoro, que dá um toque todo especial na narrativa dentro e fora do enredo. Ogami abandonou o Bushidô (Caminho do Guerreiro) e agora segue o famigerado Menfumadô (Caminho Errante do Mundo dos Mortos) e trilha com seu filho em uma estrada cheia de ódio e violência provocando ótimas cenas de ação e combates com uma beleza gráfica que mostram todo o talento de seus mangaká (autores de histórias em quadrinhos japonesas). 



Koike Kazuo é um dos mais premiados criadores de quadrinhos, justamente por causa de seu trabalho em o Lobo Solitário. Autor de contos, textos teatrais e poesia assim como alguns roteiros de filmes chegando a escrever as seis adaptações cinematográficas da saga de Ogami Itto a partir de 1972, que lhe abriu as portas como roteirista de filmes no futuro, mostrando sua famosa versatilidade. Logo, por exemplo, acabou criando o mangá Crying Freeman com o artista Ikegami Ryoichi e cuidou da sua versão cinematográfica nos Estados Unidos. Atualmente Koibe leciona em um curso universitário criado por ele mesmo chamado Gekiga Sonjuku onde já estudaram vários famosos produtores de histórias em quadrinhos japoneses como Takahashi Rumiko criadora de Ranma Inu-Yasha. 

Koike usa todo esse contexto histórico como pano de fundo para contar a sua história ficcional, pois apesar de ter bases em registros antigos do Japão (onde muitos historiadores usam como ferramenta de estudo o Lobo Solitário, principalmente pelo seu fiel retrato da sociedade japonesa na Era Edo), ainda é uma ficção com personagens inventados e caminhos diferentes da História. Assim temos um Ogami Itto que nunca existiu deste modo, mas temos um clã Ogami que realmente caiu em desgraça em 1655 e a ascensão da família Yagyû em contrapartida. Justamente para reforçar essa verossimilhança que o argumentista traz um dos desenhistas mais realistas e dedicados que tinha em seu alcance. 



Kojima Goseki é um artista autodidata que, logo após terminar o colegial, ganhava a vida pintando cartazes de filmes, iniciando seus trabalhos nos quadrinhos somente em 1950 em um Japão em crise pela Segunda Guerra Mundial. Assim realizou muitos trabalhos menores até finalmente alcançar o seu primeiro mangá de grande visibilidade chamado Dojinki em 1967, mas se consagrou apenas com a expansão do mercado japonês na década seguinte trabalhando arduamente no Lobo Solitário. 

mangaká Kojima, apensar de ser um novato na época, já havia trabalhado em um conhecido mangá de samurai chamado Kubikiri Asa quando foi chamado para fazer o Lobo Solitário. Tinha um talento para desenhos realistas que estavam na proposta de Koibe com combates quase cinematográficos e com traços visuais detalhistas que impressionam até os dias atuais. A dupla teve uma iteração impar conciliando perfeitamente o texto ao desenho e trazendo uma narrativa dinâmica e integrada. O sucesso foi tanto que chegaram a receber o título de “dupla de outro”. A partir dos anos 90 Kojima se dedicou a realizar adaptações dos filmes do consagrado cineasta Akira Kurosawa para os mangás, tarefa ao qual se empenhou até janeiro de 2000 quando infelizmente chegou a falecer. 



Logo, um personagem tão profundo como Ogami Itto em um contexto historicamente rico que apenas engrandecem uma narrativa complexamente envolvente e que ainda conta com desenhos impecáveis, acabam tornando o Lobo Solitário uma história em quadrinhos de enorme sucesso no Japão gerando vários filmes para o cinema e influenciando toda uma geração de mangaká posteriores tanto na narrativa gráfica como em enredos. 

Não era de se espantar que o mangá acabasse conquistando inexoravelmente o mundo ocidental, impressionando seus leitores e sendo cultuado por quadrinistas europeus e estadunidenses. Sua influência na cultura pop pode ser sentida até os dias de hoje nos filmes, livros e quadrinhos que trazem uma “orientalização” não apenas dos temas, mas também das formas narrativas. Talvez o maior exemplo desse impacto esteja no estilo e traço do famoso argumentista e desenhista Frank Miller. 



Frank Miller é um dos mais cultuados autores de história em quadrinhos de todos os tempos e normalmente é chamado de um dos três maiores quadrinistas, juntamente com Alan Moore e Neal Gaiman. É fácil perceber a influência de Lobo Solitário nas obras do autor estadunidense como na novela gráfica Ronin, homenagem declarada do autor. No entanto, podemos perceber essa influência, se olharmos bem, em seus outros trabalhos mainstrem como quando escreveu os personagens Batman (da DC Comics), Wolverine e Demolidor (ambos pela Marvel Comics). 

Todo esse sucesso comercial fez com que o Lobo Solitário se tornasse um dos mais longevos mangá chegando a impressionante marca de mais de 8400 páginas fascinantes e com um final que não se rendeu à própria fama tendo um desfecho imprevisível sendo finalizado pela decisão dos mangaká e não por falta de vendas ou perda do interesse do público por se tornar demasiadamente arrastado. 



Podemos sim concluir que o Lobo Solitário é a obra definitiva das histórias em quadrinhos japonesas e não apenas influenciou os mangá, mas também redefiniu a forma de contar histórias no ocidente seja em quadrinhos, livros ou filmes, como já mencionado, tornando a vingança e a busca por justiça de um homem contra o mundo um dos temas mais recorrentes e apreciados pela cultura pop mundial.    



Segue abaixo os links para as resenhas de cada volume: 
(Ainda em construção)

Um comentário:

  1. Sou praticante e sempre admirador do mais incrível espadachim da Suio-Ryu: Kuzure Okami.
    Parabéns aos autores em arte e escrita do Lobo Solitário e nossos profundos respeitos ao Fábio Rodrigues Vieira!

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