segunda-feira, 31 de maio de 2021

Lobo Solitário: O Segredo do Vento Sul


 “Indicando o Caminho” 

O Segredo do Vento Sul é o quinto volume do mangá Lobo Solitário roteirizado por Kazuo Koike e com a arte de Goseki Kojima contando a estória de Ogami Ittô, um Rônin que foi desonrado pelos planos de uma família rival e, junto ao seu pequeno filho Daigoro, decide seguir por um caminho escuro do Meifumadô como assassino de contrato enquanto prepara sua vingança contra aqueles que foram responsáveis pela sua atual desgraça. Neste capítulo todas as peças, não apenas o Lobo Solitário, começam a se mover para um futuro embate da derradeira retaliação e até o poder imperial terá sua parte em tal contenda. 

Se você quiser saber mais sobre a criação dessa obra e seus autores leia nossa resenha O Lobo Solitário. Também temos a resenha do primeiro volume O Caminho do Assassino; do segundo Uma Barreira sem Portões, do terceiro Estrada Entre Dois Rios e do quarto O Guardião do Sino. Se continuar por aqui, terá uma análise crítica mais profunda sobre este quinto capítulo. 

Este quinto volume já apresenta algumas diferenças da forma, talvez, repetitiva dos arcos anteriores. Os Yagyu se mostram bem mais presentes aqui, tendo consciência da demanda de Ogami, bem como alguns planos e estratégias traçadas para buscar a resolução do problema. Assim eles finalmente quebram a promessa feita ao Lobo Solitário tento a tentativa da primeira investida mortal contra o protagonista. Isso acaba por dar mais liberdade ao personagem que agora está mais preparado, sabendo que seus rivais podem confronta-lo em qualquer circunstância, revelando mais uma vez as atitudes desonradas de seus oponentes. 

Temos também, pela primeira vez, agentes do governo começando a tomar partido na questão o que surpreende duplamente. Acho que poucos esperavam alguma intervenção imperial tão cedo no embate entre os Yagyu e o Lobo Solitário, principalmente por ainda não ser totalmente aberto. Além disso a posição tomada também pode causar surpresa para a maioria dos leitores mostrando que a trama tem ainda a apresentar suas reviravoltas, em uma narrativa bem menos repetitiva, como alguns criticam nesta publicação. São tramas assim bem elaboradas que fazem o trabalho de Kazuo Koike ser tão bem apreciado até os dias atuais e uma das maiores qualidades do Lobo Solitário. 



Entendemos ainda mais as motivações de Ogami Ittô para se tornar um assassino que trilha pelo caminho do MeifumadôOnde antes parecia apenas uma tentativa de arrecadar dinheiro para sua demanda, o Lobo Solitário tem como oponentes assassinos, logo se tornar um é fundamental para poder confrontá-los em pé de igualdade. Ora, Ogami era um executor do império e como tal passou boa parte do seu trabalho apenas auxiliando aqueles que estavam realizando o suicídio ritual conhecido como seppuku. Não havia confronto real e direto como era comum no serviço que os Yagyu prestavam ao império. Logo os seus rivais tinham certa vantagem que o protagonista deveria buscar eliminar literalmente.  

Continuamente somos apresentados (ou reapresentados) a mente estratégica do Lobo Solitário que não se resume apenas aos seus meros embates individuais. Aliás os primeiros duelos do volume são recheados de sequências muito bem elaboradas em cenas artisticamente belíssimas. O clima é extremamente bem explorado narrativamente aqui em visuais plasticamente ricos em uma ambientação muito bem composta e representada. Muito temos falado da arte sobre as localidades, sejam naturais ou arquitetônicas, mas as variações do tempo aqui elevam a arte de Kojima em um nível ainda não visto antes, mostrando que o artista ainda consegue se superar contra todas as expectativas impostas pela alta qualidade de seus traços mostrados incrivelmente até agora.  

As chuvas e ventanias são quase reais neste mangá e, particularmente, é muito vivo o embate do protagonista com os seis Eto-gumi que ocorre em uma tempestade de areia. Principalmente apreciado pelo leitor que está acostumado com livros de estratégia orientais, como Arte de Guerra de Sun Tsu ou A Lenda dos Cinco Anéis de Miyamoto Musashi, mas, além da importância narrativa do clima, temos paisagens espetacularmente desenhadas ficando quase rotineiro o absurdamente alto padrão de qualidade apresentado por Goseki Kojima. 



Também, como de costume, temos várias reflexões filosóficas neste volume, sejam contemporizações no âmbito marcial ou não. Sentimentos sobre dever, incluindo para com os mortos, sobre princípios, sobre o lugar e modo de agir de cada degrau da escala social. O capítulo que dá nome ao volume tem algumas das cenas mais bonitas e profundas apresentadas até aqui, e, talvez, das histórias em quadrinhos como um todo. A poesia que é tratado a morte, ou melhor, o sentimento de luto, tem uma delicadeza que não se espera muito encontrar em um enredo (ou publicação) de ação e combates excitantes.  

Durante o capítulo final deste volume, O Legado de Uma Arma, temos algumas reflexões que poderiam ser meramente vistas como as habilidades e funcionalidade do uso e criação de armas em combate. Um construtor que busca aperfeiçoar seu ofício e os instrumentos bélicos que cria observando o que entende ser a verdadeira funcionalidade de suas obras ao mesmo tempo que se preocupa com o legado que sua técnica deixará para as gerações futuras. O mesmo critica a importância real que ele e os seus tem para o futuro do Império e podemos também acompanha-lo contemporizando sobre nosso próprio papel na construção da cultura e do destino da sociedade.  

Novamente temos as costumeiras críticas a sociedade feudal japonesa e o papel esperado em que cada um deveria desemprenhar, principalmente os samurais. No entanto, aqui encontramos reflexões mais profundas a cerca deste tema e não meramente opiniões divergentes. Algo bem mais próximo da espiritualidade que o nosso imaginário tem construído sobre tais guerreiros ou até mesmo o povo nipônico em geral. São pontos como este que faz a narrativa dos mangás ser tão diferenciada e nos faz compreender identificando que esses temas não poderiam ser abordados da mesma forma em publicações ocidentais.  

 

“Ouvi dizer que raras vezes sobre um vento chamado Kurohae... peço que me considere como um desses ventos raros. Apenas um rônin de passagem, participando de um trabalho que jamais faria... algo parecido como o segredo do Vento Sul.” 


Leia também a resenha do próximo volume... 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

The Walking Dead: Dias Passados

 

Primeiro arco (e encadernado) da história em quadrinhos elaborada e escrita por Robert Kirkman com desenhos de Tony Moore e publicado pela editora Image Comics. Esse início é marcado pela apresentação do protagonista Rick Grimes, um policial de uma pequena cidade do Kentucky que acorda em um hospital após ser baleado em uma ação policial, apenas para descobrir que todos no local estão mortos. Aos poucos vamos acompanhando sua jornada, enquanto é revelado que o mundo sucumbiu em um apocalipse zumbi, em meio ao desespero de um homem que busca ter notícias do que aconteceu com sua amada família.  Tudo mudou e nada será mais o mesmo. Aqueles dias comuns ficaram para sempre no passado.  

Se você quiser saber mais sobre como The Walking Dead foi criado nos quadrinhos, sobre seu idealizador e suas inspirações; aproveite para ler também nossa resenha anterior sobre a obra. No entanto, se quiser saber mais sobre este primeiro encadernado continue lendo por aqui.  



Em Dias Passados temos como artista o talentoso Michael Anthony Moore, um desenhista estadunidense que cresceu no mesmo lugar que o personagem principal. Conhecido por trabalhos de terror e ficção como Fear Agent The Exterminators, Tony não foi o único artista a trabalhar nos longos anos em que essa história em quadrinhos foi publicada, mas definiu bem o estilo e, por sua vez, o tom do enredo e narrativa gráfica. O material em preto e branco pode parecer no inicio um facilitador do trabalho, mas logo se percebe que auxilia tanto no clima que se quer passar bem como em algumas abordagens temáticas e subtramas da própria revista em todo seu período de publicação. 

Essa falta de cores ilustra bem o mundo devastado em que Rick acorda dando um certo ar onírico ao mesmo tempo que cruelmente verossímil.  Não mostrar os traumas e violência de como pode ter sido a transformação do mundo comum no pós apocalíptico acaba dando outro impacto aqui. Temos de uma só vez e, sem aviso prévio, um universo decadente e vazio, sem a vida e as alegrias dos dias passados, em que nem a loucura e o medo sobrou mais como emoções cabíveis. Temos agora apenas a tristeza, em preto e branco, das lembranças do que não existe mais e, talvez, tenha se perdido para sempre.  



Assim vamos acompanhando Rick nesse mundo desolado enquanto tentamos entender, junto com o protagonista, o que aconteceu e como sobreviver em meio a toda essa desgraça. Então é neste ponto que surge o primeiro personagem importante para a trama, Morgan Jones. É com ele que entendemos melhor o verdadeiro estado das coisas e temos algumas lições de sobrevivência que vão acompanhar toda a publicação. O seu drama, mais uma vez, mostra qual será o tom deste enredo e já nos dá um indicativo da máxima de Walking Dead. Ninguém está à salvo de ter um fim trágico aqui. 

A forma letárgica e calma que Kirkman vai construindo a sua narrativa neste primeiro arco é fundamental para o entendimento de sua proposta e embora muitos diriam que sua obra tem inúmeras reviravoltas e guinadas, não é contraditório dizer que muito do que será tratado posteriormente tem suas bases fixadas nesse encadernado magistralmente, fazendo de sua releitura, após o término de toda publicação, um sentimento totalmente diferente do primeiro contato. 

Claro que o pulo da transição apocalíptica do mundo facilitou muito para o roteiro, mas não foi motivado por mera tentativa de simplificação. Outros temas deveriam ser abordados e um bom preparo ao que está por vir era muito necessário em um enredo como este.  

Entretanto, Dias Passados não são apenas um ponto de partida, pois muitos questionamentos já são colocados e desenvolvidos aqui, sobretudo o tema de o que é ser normal ou bom, agora que tudo veio às ruinas. Ainda existe companheirismo em uma situação extrema e de exceção como a que esses personagens vivem?  Ainda existe esperança nesta desolação inexorável? Acho que a primeira resposta a isso vem com a introdução de um outro personagem, pois Glenn Rhee é um dos melhores representantes da esperança em toda publicação. 

A forma que o personagem surge e o espirito realista, mas positivo, de Glenn traz um pouco de luz as desventuras de Rick e, em meio a esse universo, isso acaba sendo como um grande clarão. Obviamente, depois, teremos outras reverberações do personagem, mas nesse primeiro arco o jovem é o gatinho para que o leitor tenha a vontade de continuar acompanhando com uma esperança, mesmo que remota, que a estória irá trilhar caminhos mais agradáveis do que aparenta. 



É um jogo de sentimentos que o autor sabe bem trabalhar, pois logo temos o encontro de Rick com notícias de seus familiares, algo que não imaginava que ocorreria tão rápido, mas com um revés chamado Shane. Seu parceiro policial, e amigo pessoal, Shane Walsh ressurge também, mas como um homem abalado por ter presenciado a transição do mundo para este caos e sua volta acaba não sendo tão positiva para o protagonista como parecia ao primeiro momento. Aqui Shane está longe de ser tão aprofundado como foi na série televisiva, mas sua participação pode ser vista como ainda mais dramática e, de certa forma, intensa.  

Tudo acontece de maneira um pouco superficial que, podemos concluir duas coisas. Uma narrativa deliberada para nos colocar tão confusos como o protagonista deve estar se sentindo ou, talvez, uma falta de refinamento na escrita de Kirkman. Ambas interpretações são bem plausíveis embora a última poderia ser facilmente descartada com o tempo visto que a qualidade das futuras edições é impecável. Talvez o autor tenha seu próprio amadurecimento como contador de histórias durante essa publicação e se tivermos essa visão unida ao fato de como o protagonista também amadurece com o tempo podemos apreciar essa obra e entender um dos motivos principais de tanta aclamação que recebeu.  

The Walking Dead é sem dúvidas uma das melhores histórias em quadrinhos escritas saídas do cenário underground alcançando o mainstream. Talvez por isso também seja tão bem recebida, pois tem todos os fatores que faz com que obras autorais sejam de qualidade impar ao mesmo tempo que tem todo o apelo de histórias em quadrinhos de sucesso de vendas. Sua narrativa assertiva que tende não obedecer a nenhum padrão pré-estabelecido pela indústria ao mesmo tempo que temos personagens cativantes e de enorme empatia ao grande público.  

O talento dos autores, tanto o roteirista como o artista, já mostra neste primeiro arco toda sua versatilidade nos preparando para o que há por vir ao mesmo tempo que temos sim uma estória que já agrada aqui e fisga o leitor a querer acompanhar o protagonista por tantos anos.  



Uma história em quadrinhos que encontramos a rara oportunidade de termos um enredo com uma narrativa muito bem desenvolvida e ao mesmo tempo com personagens cheios de empatia e importância a trama de tal forma que, uma vez aprofundados futuramente, acabam se tornando tão vitais para o enredo como o universo construído em si. Não é toda vez que temos essa oportunidade e não é toda vez que encontramos uma publicação que já inicia ótima e sua qualidade apenas aumenta em cada arco apresentado.  


Leia também a resenha do próximo volume...