quarta-feira, 31 de março de 2021

Lobo Solitário: A Estrada Branca Entre Dois Rios


 “Meio tatami, um tatami, duas tigelas e meia de arroz.” 

 

A Estrada Entre Dois Rios é o terceiro volume do mangá Lobo Solitário escrito por Kazuo Koike e desenhado por Goseki Kojima. Esta obra conta a estória de Ogami Ittô, um Rônin que foi desonrado pelos planos de uma família rival e, junto ao seu pequeno filho Daigoro, decide seguir por um caminho escuro do Meifumadô como assassino de contrato enquanto prepara sua vingança contra aqueles que foram responsáveis pela sua atual desgraça. Nesse capítulo temos a continuidade do protagonista em seu trabalho como mercenário, mas também temos novas revelações sobre seu passado que acabam aprofundando mais ainda o personagem e compreendemos melhor o que o motiva a seguir por uma via tão tortuosa e cruel.  

Se você quiser saber mais sobre sua criação e seus autores leia nossa resenha O Lobo Solitário. Também temos a resenha do primeiro volume O Caminho do Assassino e do segundo volume Uma Barreira sem Portões Se continuar por aqui, terá uma análise crítica mais profunda do terceiro volume. 

Logo, nesse momento que o enredo poderia começar a ficar cansativo com as missões em sequência do Lobo Solitário, temos um desenvolvimento de sua trama principal atada à um maior conhecimento de suas motivações. Poderia parecer desnecessário, pois o suficiente já tinha sido exposto, mas entendendo que muitas táticas do protagonista podem parecer até cruéis, acaba por ser muito bem vindo um aprofundamento na alma do assassino deixando bem claro o que o tornou tão implacável desta forma. O leitor pode ainda não concordar com seus métodos, mas agora compreende melhor os motivos e isso é fundamental para que exista uma mínima empatia com sua causa e assim melhor aproveitamento da obra.  

Da mesma forma temos um volume mais intimista e filosófico que os anteriores, nos proporcionando maior reflexão sobre quem é o Lobo Solitário e o Caminho dos Assassinos da mesma maneira que também contemporizamos sobre o futuro do infante Daigoro. Descobrimos que o destino da criança já estava traçado desde o seu nascimento e agora, um pouco mais crescido, vemos que cada vez mais suas ações influenciam o rumo da estória bem como as decisões do próprio pai que se mostra menos insensível ao filho e ao mundo que os cerca.  

Temos aqui a oportunidade de ver o frio matador tendo empatia por quem Daigoro acolhe e defendendo, sem razões mesquinhas, a vida de pessoas inocentes e desconhecidas que cruzam seu caminho. Esse talvez seja um dos temas principais deste capítulo. O caminhar preciso entre a linha do bem e do mal, uma estrada branca entre o rio de fogo da ira e o rio da água cheio ambição.  

Embora tais reflexões filosóficas e reviravoltas do passado sejam importantíssimas para “o caminhar da estória principal”, estão ainda nas missões rotineiras do assassino os maiores destaques do volume. O roteiro poderia facilmente se perder se esses “micro-contos” não fossem igualmente elaborados e se não tivessem igual peso na mensagem que os autores querem trabalhar em sua obra para uma ponderação mais crítica dos leitores. 

 


Logo, ainda temos críticas, se antes suaves, agora acidas à sociedade japonesa e principalmente a imagem que os samurais são representados no senso comum da cultura tanto oriental como ocidental. Muitos são membros de uma elite já desgastada que não preservaram nada da honra dos seus antepassados, uma clara crítica a era Edo sob o comando do clã Tokugawa. Isso se reafirma mais ainda quando o mangaká mostra respeito e honra nos homens de classe baixa incluindo até mesmo as prostitutas que são marginalizadas pela sociedade da época.  

Assim temos uma clara dicotomia entre os camponeses e marginalizados que se consideram o povo comum contra um Estado cada vez mais autoritário e opressor que aqui são várias vezes retratados com o monopólio da violência legalizada. Um governo que, por sua própria falta de honra, acaba cometendo julgamentos absurdos e muito precipitados colocando as classes desfavorecidas, sem esperança, entre criminosos cruéis e uma força de justiça que ao invés de protege-los acaba por explorar ainda mais sua desgraça.  

Entre essas forças do Estado aparecem, pela primeira vez, de forma clara, os ninjas institucionalizados. Tais espiões costumam a ser retratados como subversivos e aliados aos camponeses, tal qual condizentes com sua origem histórica, mas muitos desses guerreiros das sombras foram de fato trazidos ao governo no período Edo como um esforço dos Tokugawa para se manter no poder reprimindo levantes revolucionários com uma rede de espiões sem precedentes na história do Japão até esse momento. Era um benefício duplo, pois na época muito se acreditava que Oda Nobunaga, o primeiro shogun a tentar unificar o país, teria sido assassinado pelos ninjas, mas agora trabalhando para o governo eles, além de não mais antagonizarem o poder instituído, também seriam os melhores espiões para descobrir células de revolta em fase germinal e assim eliminando qualquer um que poderia se tornar opositor ao Imperador e claro, aos Tokugawa.    

Tal representação dos ninjas é baseada em muito estudo e precisão por Kazuo Koike que os mostra manejando armas tipicamente utilizadas pelo ninjutsu como a Tekko Kagi (garras que também serviam para escaladas), os códigos que eles faziam separando ou juntando ideogramas japoneses para formar kanji próprios e secretos, além de suas táticas e técnicas. Aliás o estudo das técnicas que já aparecia nos volumes anteriores estão muito presentes neste terceiro. 



Praticamente todo combate aqui é recheado de informação sobre as técnicas de cada personagem e como elas impactam os duelos e lutas. É justamente a percepção e reflexão dessas técnicas que dão vantagem à um dos guerreiros desequilibrando o combate, geralmente, em favor do protagonista que demonstra ter um conhecimento profundo das escolas e suas táticas. Isso demonstra que o guerreiro japonês, samurai ou não, eram bem mais que apenas um lutador, mas alguém também muito culto e metódico que estuda profundamente todas as técnicas de combate possíveis para melhor elaborar sua estratégia em um duelo. Muito da máxima do chinês Sun Tsu é utilizada aqui, principalmente em seu ensinamento de que “quem conhece o inimigo e a si mesmo vence todos os combates”. Não é estranho que tal filosofia seja empregada aqui, pois esse pensador é muito bem quisto também nas artes marcais japonesas bem como outros aspectos como administração empresarial do Japão atual. 

Faz parte também das técnicas e filosofia marcial japonesa o duelo espiritual, um combate que ocorre na mente dos lutadores antes de se enfrentarem fisicamente o que também é representado neste volume de maneira muito competente, principalmente pela arte de Goseki Kojima que consegue, com seus traços, demonstrar certo ar onírico neste embate mental dando a clara sensação que os espíritos dos combatentes estão lutando bem antes de seus corpos.  

Temos que fazer justiça a arte do mangaká que está especialmente brilhante neste volume que conta com muitas cenas sem falas onde a narrativa é representada apenas por desenhos em sequência, dando ao leitor um deleite de como se produz uma obra ímpar e magnifica da nona arte. Aqui tudo importa, enquadramentos, posições e expressões dos personagens que são executadas com maestria por Goseki que justifica toda sua aclamação.  

Assim, esse terceiro volume é mais uma prova que Lobo Solitário é uma das maiores histórias em quadrinhos de todos os tempos. Não existem barreiras temporais e geográficas para a admiração desta obra da arte sequenciada que, cada vez mais, mostra ser um material magnífico e muito compensador para apreciar sua leitura com muito esmero e prazer.  

 

“Os samurais e os agricultores são seres humanos iguais em tudo...comem e cagam do mesmo jeito. Apesar disso, são os samurais que detêm o direito de tirar ou manter a vida dos mais fracos...quando percebi isso, fiquei decepcionado com o fato de ser um samurai...” 


Leia também a resenha do próximo volume...  

segunda-feira, 22 de março de 2021

Black Hammer: Era da Destruição parte I


Era da Destruição é a primeira parte do terceiro arco (e encadernado) de Black Hammer, uma história em quadrinhos criada e roteirizada por Jeff Lemire com artes de Dean Ormston e cores de Dave Stewart publicada pela Dark Horse em 2016 e trazida ao Brasil pela editora Intrínseca em 2018. Nesse novo volume temos o desenrolar da grande reviravolta não apenas na trama, mas também em sua narrativa fazendo que a estória evolua significativamente onde muitas das perguntas dos arcos anteriores são respondidas dando uma guinada no enredo apontando para seu inexorável desfecho que deve acontecer ainda no próximo e último volume desta brilhante saga da nova arte.  

Para maiores informações sobre os encadernados anteriores, leia nossa resenha Black Hammer: Origens Secretas e Black Hammer: O Evento. Se você também quiser saber mais sobre a criação desta brilhante obra e de seus autores leia também Black Hammer: Apologia ou Desconstrução dos Super Heróis?    

Assim tínhamos tudo para ter um encadernado que serviria de transição apenas ligando um ponto ao outro da estória, mas não é o que acontece aqui. Temos uma continuidade digna da publicação em que somos guiados pelas investigações da Black Hammer (ou Lucy Weber). E, apesar de parecerem bem confusas no início, finalmente chegam em algum lugar e podemos ser surpreendidos com algumas revelações e entender melhor qual é o verdadeiro papel de alguns personagens na trama que foi criada desde o primeiro volume.  

Houveram muitas críticas sobre esse volume, mas receio que boa parte delas seja o estranhamento que causa na mudança quase sutil de narrativa onde temos dois volumes que praticamente servem para desenvolvimento de personagens com a trama tendo seu desdobramento bem lentamente, mas agora temos uma evolução significativa de toda intriga cujo enredo se destaca bem mais na estória que os próprios personagens já apresentados.  

A trama se torna, finalmente, protagonista e o primeiro problema que podemos refletir sobre isso é que se a estória não for entregue a contento, principalmente as revelações desde volume, pode gerar uma decepção aos leitores que, não tem mais uma narrativa que priorizava os personagens bem construídos que tanto foram amados e bem quistos. No entanto, minha leitura é que isso não ocorreu, pois, toda a construção de personagem tem uma significância marcante para entender a reação de cada um as revelações e as motivações que os levaram a agir como agiram, dando uma continuidade coerente a trama apresentada. 


Outro ponto é que as revelações funcionaram totalmente e não decepcionam nem um pouco. Nem com a mudança narrativa que teremos a partir de agora perde o ritmo, muito pelo contrário. Já era imaginado que tudo seria diferente do que prevíamos e que o enredo tomaria mesmo outro caminho. 

Enredos investigativos, quando bem trabalhados, podem se tornar mais interessantes do que qualquer gênero narrativo e é o que acontece aqui. Embora as loucuras e metáforas subjetivas que ocorrem no início deste volume poderiam ter deixado tudo confuso demais, acabou por apresentar uma fábula ainda mais complexa e cheia de camadas mostrando que esse universo é ainda muito maior do que foi, e talvez, será apresentado.  Esse recurso gera uma sensação incrível de verossimilhança que constrói um universo coeso e crível onde não fica a impressão que tudo ali foi criado apenas para uma história em quadrinhos curta.  

Provavelmente este seja o volume que mais apresenta possibilidades para que outras estórias sejam narradas nesse mundo criado por Lemire ao mesmo tempo em que o autor extrapola as homenagens a nona arte cruzando algumas linhas que não tinham sido feitos até aqui, como algumas auto referências e a brilhante citação a obra de Neil Gaiman chamada Sandman, uma das maiores histórias em quadrinhos de todos os tempos.  

Temos então um amadurecimento do que tinha sido apresentado até então que, só seria possível pela empatia criada aos protagonistas de Black Hammer, antigos e novos. E mesmo sendo movidos agora pelo enredo, reagem de maneira convergente às suas personalidades construídas até este ponto e, apesar das revelações mostrarem outras facetas mais profundas dos mesmos, isso ocorre de maneira muito natural e fluída demostrando uma habilidade incrível de Lemire não apenas como criador de estórias, mas também como seu condutor narrativo.  

Toda história de mistérios tem o sério risco de decepcionar quando perguntas começam a ser respondidas e todo um esforço se faz necessário para que a qualidade continue e que depois dos mistérios mais importantes sejam revelados ainda exista interesse no consumidor desta obra. O autor o faz de uma maneira incrivelmente satisfatória demonstrando que todo o emprenho e preparação árdua, como foi considerado em nossa primeira resenha de Black Hammer, foi essencial para construir uma série consistente e de alta qualidade. 


As revelações importantes antes do final não estragam, de forma alguma, a experiência de leitura nem desmotiva o seu leitor pela obra, pois Lemire sabe bem como construir a tensão e mesmo que aqui a pergunta principal, de como os super heróis tenha vindo parar na fazenda, tenha sido finalmente respondida, ainda não sabemos como eles irão resolver os problemas de tal implicação os levou aquele local e ponto terminando o encadernado com um baita gancho ainda mais instigante que as reviravoltas finais dos arcos anteriores. 

Assim tais respostas também trazem consigo dilemas morais, de muitas formas, inexoráveis que impactam profundamente não apenas os personagens como todo, mas também o rumo que o enredo os levará a partir de agora. Esses impasses e reveses são muito característicos de histórias em quadrinhos de super heróis se firmando como mais uma homenagem ao gênero, agora não apenas ao estilo visual ou narrativo, mas também as suas próprias abordagens, mostrando a desenvoltura e, talvez, genialidade do autor em questão.  

Todas as tramas e subtramas apresentadas, todos os meandros de intrigas e revelações que os personagens percorrem, e alguns causam, e toda a linha tortuosa, mas bem fundamentada, que Lemire constrói não faz de Black Hammer uma publicação impar apenas entre seus próprios títulos (que aliás são quase sempre espetaculares) ou entre as histórias em quadrinhos de super heróis que o autor homenageia. Não. Essa produção se destaca também entre toda a nona arte seja para o grande público (mainstream) ou para poucos (underground).  


Temos aqui, neste terceiro volume, mais uma oportunidade de apreciar um dos melhores quadrinhos já produzidos e mais uma defesa de que Lemire é um dos maiores argumentistas e criadores de arte sequenciada da atualidade. É mais uma chance para perceber que estamos em mãos de um material que realmente mereceu os prêmios que recebeu e a aclamação de muitos leitores. Uma daquelas histórias em quadrinhos que eleva o respeito à sua arte ao mesmo tempo que tem a possibilidade de agradar não apenas críticos e profundos conhecedores, mas aqueles que nuca se depararam com a apreciação de uma revista em mãos.  

E que venha o último volume!