domingo, 7 de abril de 2019

Black Hammer Apologia ou Desconstrução dos Super Heróis?


História em quadrinhos escrita por Jeff Lemire e com arte de Dean Ormston e Dave Stewart lançada pela Dark Horse em 2016 nos Estados Unidos e pela editora Intrínseca no Brasil em maio de 2018. Black Hammer é o nome da fazenda onde os personagens passam a maior parte do tempo na história e que teve seu nome em homenagem ao super-herói que teria se sacrificado para salvar o mundo de uma ameaça catastrófica conhecida como O Evento. Os Super heróis sobreviventes estariam presos à uma espécie de limbo temporal onde vivem à margem da sociedade de uma pequena e pacata cidade do interior dos Estados Unidos do qual ninguém sabe do passado heróico dos protagonistas. Tudo isso narrado brilhantemente pelo roteirista que já estava envolvido no projeto desde 2007.


Jeff Lemire é um quadrinista canadense muito aclamado pela critica e reconhecido com vários prêmios. Apreciado pelos leitores com obras que vão do underground ao mainstream com uma habilidade impar.  Entre suas obras principais autorais estão Sweet Tooth, Nada a Perder, o Soldador Subaquático e Condado de Essex; entre seus trabalhos para as grandes editoras temos sua passagem pelos títulos como o Cavaleiro da Lua, o Gavião Arqueiro, Thanos, o Velho Logan e os X-Men. Sem contar os excelentes Trilliun pelo selo Vertigo, Gideon Falls pela Image Comics e claro o aclamado Black Hammer pela Dark Horse, que é o exemplo perfeito de como Lemire caminha entre os leitores mais seletivos e o grande público. 
Projeto antigo de que seria ao mesmo tempo uma homenagem a Era de Ouro e Prata dos quadrinhos bem como uma crítica aos personagens mais próximos do anti heroísmo da Era de Bronze. No entanto, vários per causos foram dificultando a concretização de Black Hammer como o envolvimento do autor em outros trabalhos, mas principalmente com o derrame de Dean Ormston bem no meio da execução. Lemire assim decide esperar pela melhora do amigo atrasando ainda mais o lançamento, mas mostrando uma humanidade impar na indústria dos quadrinhos.


Logo com a volta do artista, Lemire se prepara para terminar o que chama de sua homenagem aos super heróis. Como muitos quadrinistas de sua época, ele cresceu lendo histórias da Era de Ouro com seus heróis inatingíveis e de caráter inabaláveis. A violência dessas revistas foram cada vez mais atenuadas devido ao Comics Code Authority que vigorava na Era de Prata acarretando em temas mais suaves e diversos como a ficção científica.
O autor sentia falta dessas histórias ingênuas, mas muito divertidas com super-heróis poderosos e histórias de ficção cientifica e terror clássico. Principalmente sentia uma derradeira nostalgia a heróis que tinham sido esquecidos ou negligenciados em reformulações editoriais, como a famosa Crise nas Infinitas Terras, que prometia organizar o universos dos quadrinhos da DC Comics por exemplo, mas acabava pagando da existência vários personagens importantes colocando-os em um verdadeiro limbo editorial.
Sobretudo, Black Hammer é uma homenagem à esses personagens que nunca mais voltaram e que os tempos vindouros diziam não ter mais espaço para os mesmos. Uma apologia a tempos e histórias mais simples e aventurescas regadas a sonhos de heroísmo utópico com pitadas de aventuras espaciais e lugares assombrados. Não, à toa, que Lemire constrói sua narrativa com protagonistas que enfrentaram um evento apocalíptico como as megas sagas dos quadrinhos e foram deixados para o esquecimento no limbo temporal chamado fazenda Black Hammer.


Entretanto Jeff Lemire também faz uma desconstrução dos super heróis ao melhor estilo dos heróis humanos da Era de Bronze nos mostrando uma família totalmente disfuncional onde além dos problemas de convívio entre eles, quase todos são, de algum modo, o que não querem ser. Uma verdadeira e profunda metáfora das famílias reais da sociedade contemporânea representando os dilemas de identidade que vivemos nos dias de hoje.
Um sentimento de não pertencimento ao grupo é muito bem trabalhado em Jeff Lemire que mostra os personagens em crises existenciais tanto internas quanto externas onde o fato de realmente estarem em uma realidade alienígena à sua demonstra o sentimento que muitas pessoas têm em relação ao seu próprio mundo. Os heróis que vivem em Black Hammer não se encaixam na sociedade em que vivem, bem como não se sentem uma família da mesma forma que perderam quase totalmente suas identidades e talvez até mesmo o seu propósito.
O quanto isso é real e representado por metáforas bem elaboradas e brilhantes como o segredo que o personagem Barbalien possui que o faz se sentir realmente um estranho como já sugere seu nome (bárbaro e alienígena) mostrando como nossa sociedade exclui inexoravelmente o diferente.
Toda essa desconstrução vai além do conceito de super heróis ou de sociedade  tão bem trabalhada em obras clássicas como Watchmen, Cavaleiro das Trevas e Authority, mas se torna ainda mais intimo do que encontramos em Patrulha do Destino, por exemplo, pois Lemire não apenas sabe trabalhar com vários personagem, mas encontra equilíbrio perfeito com narrativas individuais e como elas se encaixam no toda para que a história seja contada de maneira crível e emocional na medida certa o fazendo se importar e compreender cada um dos heróis.


Para isso o quadrinista trabalha o enredo de fundo cheio de sutilezas histórias desenvolvidas em camadas com uma narrativa gráfica muito bem executada também pelo artista que expressa precisamente os personagens decadentes do quadrinho gerando uma empatia natural que acerta muito ao tom do que se quer contar.
Talvez esses pontos positivos sejam frutos de todo o empenho para realizar essa história em quadrinhos, mas devemos destacar a facilidade de Lemire em descrever a vida no campo, que faz parte de suas experiências pessoais, com seu brilhantismo em contas histórias nos ambientando de forma tão familiar, mesmo que sejam em lugares tão diferentes da vida dos próprios leitores. O autor sabe trabalhar com a simplicidade criando um sentimento de pertencimento quase universal para quem está lendo.
Não é por menos que Black Hammer foi ganhador do premio Eisner em 2017 por melhor série de histórias quadrinhos, um reconhecimento muito merecido não apenas para essa obra, mas para todo o trabalho de Jeff Lemire e sua importância atual para a nona arte.
Black Hammer é série narrativa gráfica recomendada para todos aqueles amantes que já leram super heróis à muito tempo e apesar de ser o público aqui pode aproveitar melhor a histórias e suas referencias, a narrativa de Lemire atrelada ao cotidiano, as criticas sociais e toda reflexão existencialista pode agradar a qualquer leitor mesmo que nem esteja acostumado com essa distinta forma de arte chamada história em quadrinhos. 

Para ver as resenhas de cada arco (ou encadernado) clique nos links à baixo:


terça-feira, 12 de março de 2019

The Walking Dead nas Histórias em Quadrinhos

 

“Para mim, os melhores filmes de Zumbis não são aqueles festivais de sangue e violência com personagens estúpidos e piadas idiotas. Os bons filmes de Zumbis nos mostram o quanto somos terríveis, nos fazem questionar nossa posição na sociedade... e a posição de nossa sociedade no mundo. Eles também nos mostram sangue, violência e todas essas coisas legais... Mas, nas entrelinhas, sempre há um comentário social e preocupação maior!” 

Robert Kirkman 




The Walking Dead é uma série mensal de histórias em quadrinhos criada pelo quadrinista Robert Kirkman. Lançada em 8 de outubro de 2003 nos Estados Unidos pela Image Comics e que acabou, devido ao seu enorme sucesso, se tornando em 31 de outubro de 2010 uma popular série de TV pelo canal AMC pelas mãos de Frank Darabont e do próprio autor original. 

Aparentemente indo na onda de filmes de zumbis, principalmente os do aclamado roteirista George Romero, a revista mostra desde o inicio que o foco são os sobreviventes de uma catástrofe global que destruiu as instituições estabelecidas e colocou em xeque a humanidade como sociedade. Mas sim os vivos e o tanto que eles podem ser cruéis para sobreviver em um mundo pós-apocalíptico. 

Entretanto, não poderíamos entender o fenômeno de The Walking Dead sem compreender as novas abordagens da editora na época e principalmente sem acompanhar a trajetória do próprio autor. 


 

Robert Kirkman é um quadrinista estadunidense que saiu do meio undergrond para o mainstream, ou seja, fez com que seus trabalhos autorais nos quadrinhos ganhassem a grande mídia e teve boa repercussão com isso, pois teve total liberdade como uma grande aposta da Image Comics. Sua estreia foi com Battle Pope, seu trabalho que teve menor reconhecimento, mas logo vieram vários os sucessos, além de The Walking Dead, do qual também seria aclamado. 

Entre eles estão: sua história em quadrinhos de super-heróis chamada Invincible; o título de terror Outcast, que também virou série televisiva e Haunt com o fundador da editora chamado Todd MacFarlane. 

Image Comics passava por uma fase, também conhecida como segunda geração da editora, que para recuperar as ótimas vendas que esteve apenas em sua gênese, trouxe quadrinistas mais autorais e dando uma maior liberdade criativa para que os mesmos possam desenvolver trabalhos diferenciados e que se destaquem no mercado mainstream das histórias em quadrinhos. Essa estratégia já tinha dado certo com a editora Dark Horse anos antes e ocorreu o mesmo com a Image consagrando-a como uma das maiores dos Estados Unidos. 

Assim boa parte dos autores de quadrinhos que estavam descontentes com as amarras das grandes como a Marvel e a DC Comics puderam migrar para a Image na aposta da editora de seus próprios trabalhos e assim Kirkman decidiu colocar toda sua atenção e criatividade na época em The Walking Dead. 



Talvez a primeira coisa que podemos notar ao ler as histórias em quadrinhos é o amadurecimento gradual do autor durante a passagem das edições das revistas. Robert Kirkman era ainda muito novo quando elaborou o projeto no início dos anos 2000 para agora ser uma das melhores narrativas gráficas que temos no grande mercado dos quadrinhos. É interessante ver como a complexidade as histórias, o refinamento dos diálogos, a expansão do universo e as mudanças do seu personagem central, vão evoluindo gradativamente e junto com seu autor em arcos cada vez melhores. 

The Walking Dead em uma primeira leitura inicia com histórias bem obvias e de personagens sem muito aprofundamento e quase superficiais. O enredo desenvolve muito rápido com acontecimentos quase atropelados o que pode causar uma estranheza em quem está lendo, principalmente para quem já assistiu a série da AMC. No entanto, quando o universo vai se expandindo em quadrinho após quadrinho, temos um aprofundamento incrível dos personagens que vão se revelando cada vez mais interessantes à medida que as histórias tomam enredos mais bem elaborados e com sutilizas beirando a filosofia e crítica social impactantes. O ápice de toda essa melhora de narrativa do autor está bem catalisada no personagem principal, o policial de uma pequena cidade do Kentucky. 

O oficial Rick Grimes. 



O protagonista de The Walking Dead e o personagem que mais evoluiu nessas histórias em quadrinhos, tendo um início que, apesar de tenso, mostra todo seu bom caráter em que podemos vê-lo quase que como vítima das circunstâncias trazendo certa ingenuidade e fragilidade do personagem. Ao passar do tempo (e das edições) Rick tem um verdadeiro embrutecimento de sua personalidade fazendo-o tomar atitudes que jamais imaginávamos no início da história. Seu senso de moral se torna cada vez mais cinza ao ponto em que praticamente podemos interpretá-lo como vilão nas revistas mais recentes. Alguém em que os horrores de um mundo pós-apocalíptico foram moldando o policial aos poucos de uma maneira tão bem executada que dificilmente percebemos essas alterações ou, se percebemos, não sabemos exatamente quando isso ocorreu dando um realismo absurdo a narrativa e cumprindo brilhantemente a proposta original do quadrinista Kirkman. 

Rick Grimes amadurece na história à medida que o autor amadurece em sua narrativa que cada vez mais refinada e complexa expandindo esse mundo tomado pelos mortos vivos. Tudo interligado de uma maneira brilhantemente impar tornando o nome de Robert Kirkman em destaque entre os melhores autores de histórias em quadrinhos do seu tempo e deixando um legado de alta qualidade da nova arte para a editora Image Comics. 


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Assim o autor cumpre muito bem o que se propôs a fazer, uma narrativa gráfica diferenciada em um mundo pós-apocalíptico cheio de uma profusão de zumbis, mas que em nenhum momento deixa que as pessoas “vivas” sejam o foco da sua história.  Os momentos de heroísmo ou os atos mais cruéis e abomináveis de The Walking Dead são protagonizados pelos sobreviventes daquele mundo derradeiramente arrasado e desolado por um vírus fatídico. 

E quantos acontecimentos horrendos ocorrem nas páginas dessa história em quadrinhos... 

Somos transportados a quase presenciar e refletir sobre até onde a humanidade é capaz de cometer atrocidades em nome da sobrevivência selvagem em não apenas em cenas viscerais e escatológicas, mas também em acontecimentos que precisaram de uma coragem única de Kirkman para narrar não poupando nem o mais inocente dos personagens e nem o próprio protagonista Rick Grimes. 

Todos sofrem na mão de seu autor para que possamos questionar os valores da nossa própria humanidade e em que rumo queremos que a sociedade como um todo caminhe para o futuro refletindo o nosso próprio papel como cidadão e, principalmente, como ser humano nessa caminhada inexorável do tempo. 


 

A filosofia sutilmente implícita em The Walking Dead com uma crítica social bem equilibrada em uma narrativa cada vez mais espetacular faz com que seja uma das melhores histórias em quadrinhos da atualidade atraindo uma legião de leitores sendo muito bem sucedida em outras mídias como series televisivas, livros e ao que tudo indica agora, também em formato de filme em longa-metragem. 

As histórias em quadrinhos de The Walking Dead são recomendadas tanto para aqueles que nunca viram a série da AMC como aos que assistiram, desde que entendam a mudanças necessárias de mídia e compreendam a estranheza que o enredo pode causar nas primeiras leituras. Afinal, a série e a revistas estão praticamente em dois universos diferentes com personagens com histórias bem distintas ou exclusivos de cada veículo previamente apresentado. 


 

Uma narrativa gráfica que mostra a importância de dar liberdade criativa para seus quadrinistas não impondo muitas restrições editoriais dando aos autores todas as condições de escrever e desenhar boas histórias em quadrinhos atraindo mais público e engrandecendo ainda mais a nona arte.