terça-feira, 4 de maio de 2021

Falcão e o Soldado Invernal

                                  

“Essa resenha contém spoilers de todos os episódios, portanto apenas leia se já tiver assistido tudo ou se não se importa..."

 

Minissérie em seis episódios da Marvel Studios em parceria com o serviço de streaming Disney+ que fez sua estreia dia 19 de março. Roteirizada e Produzida por Malcolm Spellman e baseada nos personagens, de histórias em quadrinhos, Falcão (Sam Wilson) interpretado por Anthony Mackie e o Soldado Invernal (Bucky Barnes) interpretado por Sebastian Stan. Tais personagens apareceram originalmente nas revistas do Capitão América ganhando protagonismos em títulos próprios mais tarde e, ambos, chegando a carregar o escudo (e o legado) do Capitão em alguma fase das estórias, cada um em seu momento específico. Esta foi a segunda iniciativa em minissérie que, sendo a primeira Wandavision, também faz parte do Universo Cinematográfico da Marvel estando intimamente ligada aos filmes. No entanto, podemos ver em Falcão e Soldado Invernal uma ligação muito mais clara desta conexão, pois rapidamente percebemos isso não apenas no enredo, mas nas técnicas de filmagem e narração.  



Depois da minissérie anterior ser toda experimental (e vendo os trailers das próximas que também aparentam ser bem diferenciadas) Falcão e o Soldado Invernal me empolgava muito pouco por parecer ser mais do mesmo, sendo mais uma produção com a já cansativa Fórmula Marvel e, de certa forma o é, mas temos aqui esse formato em seu melhor desempenho. A base narrativa aqui parece ser o segundo filme do Capitão América o que para muitos (eu incluso) é um dos melhores filmes do UCM. Então temos uma produção que parece aqueles ótimos filmes de ação e que tem um enredo bem elaborado se aproximando aos longas de espionagem com questões políticas e, até sociais, envolvidas. Uma trama que desenvolve os personagens principais e não coloca antagonistas que não tenham uma profunda motivação envolvida.   

Assim, a minissérie lembra muito os filmes da Marvel Studios, mas quando estes estavam em seu auge. São essencialmente produções destinadas à índices altos de bilheteria onde o entretenimento é mais importante do que o aspecto artístico ou profundidade do roteiro, mas que, mesmo assim, não é desprovido de qualidade e que busca ter questões relevantes sendo tratadas da melhor forma possível em um blockbuster 

Essa produção está exatamente nesse ponto e se fosse em formato de um filme, provavelmente, estaria entre os melhores filmes criados para o Universo Cinematográfico da Marvel. Com certeza, um dos melhores em conteúdo a ser apresentado e um verdadeiro tapa na cara de quem duvidou que ainda existia fôlego em produções de super heróis. É realmente uma tentativa de traspor os melhores filmes de ação no formato de minissérie com protagonistas realmente interessantes. Eu até poderia dizer que tanto o Falcão como o Soldado Invernal já tinham sido apresentados nos filmes anteriores, mas assistindo essa produção posso tranquilamente dizer que não. Eles não tinham sido apresentados até agora, principalmente o Falcão. 

Temos um Sam Wilson que tem uma importante decisão para tomar assombrando-o por toda minissérie, mas o Falcão precisa primeiro descobrir quem realmente é; para saber quem ele pode ser. Essa reflexão é muito bem trabalhada aqui e embora ele busque conselhos de várias pessoas neste trajeto, fica claro que ninguém pode decidir à não ser ele mesmo.  

Ninguém pode falar quem você é... a não ser você mesmo.  

Entretanto o outro protagonista, cujo nome está no título, não tem sua importância diminuída de forma alguma nessa produção. O Soldado Invernal é tão importante na estória como o Falcão e, com certeza, gosto muito mais do personagem agora. Sua busca pela redenção é primeira uma demanda interna e depois externa tendo o ator se entregado ao personagem muito mais do que em qualquer outra produção da Marvel Studios. Alguns momentos dramáticos com ele realmente surpreendem e consegue transmitir muito de toda sua profundidade gerando uma empatia enorme por Bucky Barnes. 



A trama principal está sendo mostrada em um ritmo perfeito sendo revelada com maestria à medida que as investigações avançam e os acontecimentos dão sequência dividindo a atenção, em equilíbrio, com o desenvolvimento dos protagonistas e suas tramas pessoais à medida que são apresentados novos e relevantes personagens.  

Tal equilíbrio também se mostra nos tons de cinza. Ninguém é completamente "do bem” ou "do mal”. Toda causa tem sua razão de ser, mesmo que tenha sido executada por meios não muito agradáveis. Todo mundo é um herói em sua própria história.  Em um mundo totalmente polarizado como vivemos hoje, uma estória que busca mostrar que nada é “preto ou branco” tem uma importância absurda. São vários diálogos incríveis que colaboram com isso, como um dos vilões fazer a provocação de que todo super soldado é um supremacista ou que terroristas são chamados assim apenas por aqueles que se opõem a eles. Tudo não passa de um ponto de vista. Questionamentos importantes que mostram a complexidade do mundo atual e que nada, retirado de seu contexto, pode ser compreendido em sua totalidade. Até onde vai a linha que separa heróis de vilões e, se existe tal diferença clara, quem decide o certo e verdadeiro quando duas forças opostas têm bem definidas suas causas como justas... 

E se ambas as causas forem justas e mesmo assim estiverem em lados antagônicos?  

Uma vez cruzada essa linha entre bem e mal existe retorno? A redenção é possível?  

Incrível como cada personagem tem seu papel na minissérie não apenas no enredo, mas em questões que a produção também busca trazer reflexão. Temos um herói que várias vezes é confundido com marginal apenas por motivos preconceituosos e mesmo assim se mostra absurdamente integro. Temos vilões que mostram coerentes com sua verdade em alguns momentos sendo fiéis aos seus próprios princípios. Heróis que buscam a redenção atormentados por pecados do passado e vilões que se refletem não apenas o resultado de suas ações, mas a forma mais correta de executa-las. 



É verdade que existem algumas críticas sobre o retorno do vilão Zemo interpretado por Daniel Brühl, mas eu prefiro muito ele aqui do que foi em Capitão América: Guerra Civil (e eu já gostava dele lá), pois nessa minissérie ele se mostra em um tom muito mais coerente com o personagem tanto em sua esperteza e no próprio comprometimento com sua causa. Conseguiram construir um personagem radical que não é estúpido. Ou seja, alguém realmente muito perigoso. 

Apenas o chamado Mercador do Poder, ou melhor Sharon Carter interpretada pela Emily VanCamp, achei mal desenvolvido. Entendo que ela está ali para algum gancho que será utilizado em produções futuras, mas era uma personagem importante demais neste enredo para ser mostrada de forma tão rasa. Era bem possível entregar mais da personagem, como os demais, e ainda guardar seus segredos mais importantes.  Acredito que foi assim feito para que gere especulações (ela é uma Skrull?), mas mesmo assim um roteiro tão bom poderia ter tratado a personagem bem melhor do que foi. 

Novos personagens também foram bem desenvolvidos em destaque para toda a construção e desenvolvimento do Agente Americano (John Walker) interpretado pelo ator Wyatt Russell.  Aliás o quão bem feito está construção do Walker e como ele está oscilando perfeitamente na linha que separa os heróis dos vilões em uma trajetória ideologicamente complexa e bem humana. Sua “evolução” de um Capitão América com o escudo manchado de sangue para o Agente Americano financiado por uma personagem misteriosa, a condessa Valentina Allegra de Fountaine, interpretada pela atriz Julia Louis-Dreyfus que, com toda certeza, tem fins bem escusos para o anti-herói.  

Não apenas personagens das histórias em quadrinhos foram apresentados, mas também temos mais um local fictício do universo Marvel sendo trazido para o MCU com a perigosa Madripoor que aqui aparece ainda mais misteriosa e arriscada de se entrar do que foi mostrado nas revistas conseguindo transmitir para nas telas toda a sua importância. É interessante observar como estão trabalhando bem tais locais (como foi com Wakanda) em nova roupagem e como esse universo está sendo mostrando com mais dinamismo e de forma mais fluída até que nos quadrinhos, onde muitos pontos realmente se ligam gerando uma verossimilhança muito competente.  Fico imaginando o que irão construir quando finalmente aparecer a nação da Latvéria nos cinemas.  

Claro que como leitor antigo de X-Men (e especificamente nesse caso de Wolverine) a aparição de Madripoor tem um gosto a mais que não foi suprido pela minissérie. Fora algumas parcas referências, não tivemos nada sobre o Caolho, o que seria realmente incrível! Mas, provavelmente, esse pode ser um local que será revisitado futuramente e, talvez, tenha alguma importância para a franquia dos mutantes. 

Aliás o grande ponto positivo desse episódio para mim foi justamente como se utilizou esse universo e como os personagens do cinema que apareceram aqui são, na maioria, bem trabalhados. Inclusive alguns até melhor mostrados do que nos filmes me gerando melhor empatia por vilões que foram meio rasos até agora e voltam mais bem definidos e até interpretados melhor.  



Entretanto talvez a cereja do bolo desta produção seja os temas tratados. 

Muito se falou que várias questões delicadas seriam abordadas em Falcão e o Soldado Invernal, principalmente sobre o movimento ativista Black Lives Matter e as suas reflexões sobre o racismo estrutural dos Estados Unidos. Claro que teríamos algo assim por ter um protagonista negro, mas são vários posicionamentos do roteiro que acrescentam a problemática de forma mais assertiva e, a aparição de Isaiah Bradley interpretado por Carl Lumbly, pode tornar esse tema ainda mais forte e relevante no contexto da minissérie.  

Embora tal aparição já demonstra que muita coisa foi mudada e adaptada para essa produção, mas Bradley foi um personagem criado em 2003 na história em quadrinhos do Capitão América chamada “Verdade: Vermelho, Azul e Negro” para representar um fato cruel ocorrido em 1932 onde negros foram cobaias de experimentos pelo Instituto Tuskegee (com apoio da saúde pública estadunidense principalmente pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças). Este é um tema muito pesado, mas de extrema relevância que foi tangenciado na minissérie, no entanto, pode gerar várias reflexões sobre como o racismo ainda perpetua na nossa sociedade, o que para muitos, pode parecer excepcional em uma produção baseada em entretenimento com super heróis, mas bem comum para quem já acompanhava histórias em quadrinhos da Marvel e algumas outras editoras.  

Fico feliz que a aparição do velho Bradley não tenha sido apenas uma referência isolada, ou uma mera ponte para apresentar seu neto, um outro personagem importante chamado de Patriota (Elijah Bradley) interpretado por Elijah Richardson e que deve retornar como um dos Jovens Vingadores. Assim Isaiah Bradley, além de sua obvia importância, também foi intimamente ligado ao enredo principal sendo um dos caminhos para elucidar como os Apátridas conseguiram adquirir suas capacidades sobre humanas e assim viabilizar e articular seus propósitos. O fechamento do seu arco deveria ser significativo e, ao meu ver, foi muito. Bradley tem uma estória importante demais para ser apenas uma referência dos quadrinhos ou ponte para outro personagem e acredito que ele foi retratado como deveria ser em toda a produção. 

De qualquer forma, são questões relevantes que ajudam a refletir sobre nossa sociedade e seus rumos. O que se faz de suma importância principalmente nessa polarização que parece ter atingindo tanto os Estados Unidos como nós brasileiros. Falcão e o Soldado Invernal se faz necessária não apenas como uma minissérie de ação escapista, mas como mais uma produção da chamada cultura pop/nerd que tem seu crédito também por trazer crítica e reflexão sobre o mesmo nicho que representa. 



Então acompanhamos Sam Wilson sentindo o peso do legado de ser o Capitão América, mas agora não apenas no que Steve Rogers representou, mas sim o que esse símbolo retrata em sua totalidade mais abrangente e, enfim, completa.  É discutido o que denotaria o super herói mais simbólico dos Estados Unidos sendo um cidadão negro. Mas não apenas em sua representatividade mais óbvia e sim o que significaria tanto ao povo no geral como para a própria comunidade especificamente negra. Não é apenas um legado de um homem ou do símbolo que Rogers representou, mas algo bem mais expressivo e complexo que pode reverberar de maneira muito mais relevante. 

Temos então uma trama bem mais próxima das questões levantadas nas revistas da excelente fase do Sam Wilson como Capitão América escrita Nick Spencer e, embora a minissérie televisiva não tenha uma narrativa tão assertiva como nas histórias em quadrinhos, o que foi entregue até agora agrada muito. Embora seja triste como o personagem Joaquim Torres, interpretado por Danny Ramirez, tenha sido tão levianamente reduzido nesta versão para o streaming 

O derradeiro episódio da minissérie é trazido com muitas expectativas de uma boa finalização. Expectativas essas que poderiam ser duramente frustradas, principalmente acompanhando as últimas produções; não apenas da Marvel, mas também em séries e cinema como um todo. A ótima Wandavision já dava um indicativo que essas novas produções da Disney seriam diferenciadas, mas sempre ficamos com o “pé atras” e, felizmente, estávamos totalmente errados. 



Ora, era realmente necessário todos os 6 episódios para que o Falcão finalmente assumisse o Escudo e se tornasse o Capitão América? 

Sim! Era necessário. 

A construção do Sam Wilson como Capitão foi ótima, pois ela aborda todas as questões que poderia sobre isso. O fato de ter um Capitão América negro, o fato do legado deixado por Steve Rogers e o fato de como ser um verdadeiro super herói nos dias atuais onde o inimigo não é mais tão claro. São várias questões relevantes que não são trabalhadas uma em detrimento da outra. Tudo é muito bem desenvolvido aqui e faz de Falcão, um personagem coadjuvante até então, um protagonista do primeiro escalão.  

Conseguimos ver claramente Sam Wilson agora como Capitão América e posso ver tranquilamente um filme novo dos Vingadores, sejam eles quem forem, sob a sua liderança. Temos nitidamente o que faz dele um verdadeiro herói e toda a simpatia necessária como protagonista. Um roteiro tão bem escrito que até o desenho daquele uniforme, que sempre achei horrível nos quadrinhos, ficou ótimo e mostra a mensagem bem claramente.  

Esse é o Capitão América. 

No fim Falcão e o Soldado Invernal é uma minissérie ótima em um nível muito acima do esperado e que fecha muito bem o que se propôs sendo uma obra completa. Ao mesmo tempo deixa algumas pontas para as próximas produções que não deixam sua estória em falta, mas nos faz querer continuar acompanhando.  

Exatamente como deve ser! 

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