segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A Bruxa


“O cajado será a lei dos desesperados. 

Apenas o mais prudente portará.

O Mal rastejará novamente para as profundezas.” 

 

E caminhou desajeitadamente por aquela profusão de gente raivosa apoiada solenemente em um cajado argênteo. Prudência.  Se dirigia ao palanque improvisado com muito cuidado, mas em uma calma que contrastava abertamente a multidão em fúria. Tinha que ser assim. Ela estava sendo julgada por crimes terríveis e não poderia se dar ao luxo de nenhuma reação agressiva, embora poderia se dizer que a revolta era uma reação obvia e até justa no momento. No entanto, outros poderiam declarar tal sentimento, mas ela não. Não uma bruxa. Não uma mulher. Ela tinha como único apoio... o cajado.  

Era um cajado prateado que, se não fosse pelos pequenos cortes no couro que revestia parte do cabo, se poderia dizer que fora forjado naquele momento de tão novo que aparentava toda a sua construção metálica. Era efeito do, chamado, metal dracônico. Uma poderosa liga de origem desconhecida que era praticamente indestrutível e aparentemente imune a desgaste, pois aquela arma tinha séculos de existência. Um famoso item mágico alongado com sua extremidade em formato de uma pata de dragão segurando uma pequena bola de cristal entre as garras. Um artefato seguro e firme para servir de apoio a qualquer criatura, mas tal sustento não era apenas físico. 

Não. 

O cajado não era um dos vários itens de sortilégios que a Bruxa mantinha em sua cabana na região fronteiriça do vilarejo. O artefato secular pertencia na realidade ao sábio que todos respeitavam como o guardião das leis do lugar. Um líder dos magistrados de enorme senso de justiça. Sim. Um juiz que arbitrava todas as questões legais e até morais do cotidiano daquelas pessoas. O porta-voz da norma que definia as almas daquela gente e todos sabiam que era alguém sempre verdadeiro, pois o cajado era mágico e o impedia de mentir. Verdade. O objeto de poder arcano impedia que qualquer pessoa pudesse mentir e, por isso, estava em posse da Bruxa para que ela mesma pudesse fazer suas declarações e que fossem totalmente ilibadas sem que houvesse qualquer suspeita duvidosa. 

E assim ela o fez.  

A Bruxa se empertigou no meio daquele tribunal construído provisoriamente apenas para seu julgamento. Olhou serena para todos aqueles bestializados que urravam por sua condenação. Acusavam. Diziam que ela tinha feito pactos com demônios ou coisas mais antigas e perversas. Diziam que ela profanava a alma de quem buscasse sua ajuda a fim de vendê-la ao Senhor dos Nove Infernos. E, principalmente, diziam que as crianças desaparecidas recentemente teriam sido sequestradas e devoradas por ela.  

A Bruxa falou. 

Mesmo estando fragilizada pelos golpes que recebera quando foi capturada pelo povo, mesmo debilitada em seu corpo franzino, mesmo tendo o cajado como único apoio. A Bruxa falou. Sua voz ecoou por todo o vilarejo e além. Dizem que podia ser ouvida nas profundezas da floresta que cercava o lugar. A Bruxa falou. Olhava com muito vigor apesar dos olhos cansados como os daqueles que tinham visto muitas coisas terríveis. Diziam que cada aldeão poderia sentir os olhos dela sob duas almas. Penetrante.  

A Bruxa falou. 

Mesmo que não fosse pelo cajado as palavras da mulher eram tão convictas e poderosas que não deixavam dúvidas nem nos corações mais maliciosos cheios de acusação e desejosos de fogueira. Nem o mais hipócrita das criaturas viventes poderia ouvir aquilo e ainda querer acusar a Mulher de qualquer coisa. Verdade. A Bruxa apontou a cada um daqueles que ajudou trazendo a vergonha para fora de seus âmagos sob a luz da verdade. Ela expos a todos de sua mesquinharia, hipocrisia e, principalmente mediocridade. As trevas da ignorância são combatidas com as luzes verdade. Eram eles que tinham a alma escura. De muitas formas. De muitos significados. Ninguém poderia dizer mais nada. Ninguém poderia a acusar de mais nada. Silêncio. A Bruxa então não disse mais nada. Não precisava. Estava livre de qualquer mal que a rodeava.  

Aquela Mulher, então, devolveu vagarosamente o cajado ao juiz e desdenhosamente partiu em meio a uma multidão que abriu espaço para sua passagem. Sem objeções do povo do vilarejo. Sem censura dos magistrados. Sem culpa alguma em sua alma e tão pouco em seu coração. Livre pelas leis mortais e divinas. Livre de qualquer sentimento ruim, mesmo vingança ou rancor.  

Apenas... Livre.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário