quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O Lobisomem de Minas




“Em presença de tal apelação, mais brabento apareceu a peste. Ciscava o chão de soltar terra e macega no longe de dez braças ou mais. Era trabalho de gelar qualquer cristão que não levasse o nome de Ponciano de Azevedo Furtado. Dos olhos do lobisomem pingava labareda, em risco de contaminar de fogo o verdal adjacente. Tanta chispa largava o penitente, que um caçador de paca, estando em distância de bom respeito, cuidou que o mato estivesse ardendo.”
O Coronel e o Lobisomem
José Cândido de Carvalho



Era uma noite quente e fazia vários dias que não chovia naquela pequena cidade do interior de Minas Gerais. Na verdade aquela estiagem estava castigando toda e região e alguns fazendeiros estavam começando a se preocupar com suas plantações de milho, principalmente depois com a atual crise política. Todos já haviam se acostumado com tantos planos e mudanças da moeda, mas era mais a população de baixa renda da diminuta cidade que sofria tanto com o calor intenso quanto pela má administração do governo federal. No entanto, isso era o que menos preocupava a simples e velha senhora Marta Ferreira das Lourdes.
Dona Marta estava mais preocupada com seus netinhos, que acabaram de perder a mãe, vítima de tuberculose, deixando duas pequenas crianças aos seus atenciosos cuidados. A infanta mais nova, chamada Maria, tinha apenas sete anos e o mais velho que se chamava João tinha nove anos. Claro que o pai, o mecânico Lucas Ferraz Nogueira, ajudava a criá-las como podia, mas como ele trabalhava muito e acabou deixando a cargo de sua sogra a criação dos pequenos. Fora o problema com a bebida que Lucas tinha desde que a esposa faleceu, mas a senhora Marta apenas se preocupava com as crianças e como as educaria praticamente sozinha.
A avó estava contando uma estória infantil para as crianças dormirem. Tinha sido um dia duro para todos, mas os netos ainda estavam um pouco ativos demais naquela noite, talvez devido ao calor. Assim a senhora resolveu ler o que sua falecida mãe narrava para fazê-la dormir anos atrás. Era o conto da Capelzinho Vermelho e talvez não tenha sido uma boa escolha para aquele momento, mas João tinha dormido rapidamente e apenas a garotinha ainda estava acordada. No entanto, subitamente Dona Marta parou devido à voz da netinha que embora fosse delicada, acabou assustando a mulher de forma impressionante.
A pequena Maria era uma menina sempre alegre e falante, mas tinha ficado praticamente muda depois da morte da mãe, por isso a avó tinha estranhado tanto a criança falar naquele momento. Não conseguia se lembrar mais da última vez que ouviu a voz da querida neta, mas de certa forma, apesar do susto, ficou estonteantemente feliz por finalmente escutar a voz da garotinha novamente. A alegria fez com que a mulher não ouvisse o que foi dito, mas a neta repetiu:
- Ô vó, por que coisas tão ruins aconteceram com a Chapeuzim?
- Porque ela desobedeceu à mãe e foi para a floresta! – respondeu dona Marta – Não pode sair em um lugar estranho sem que os adultos saibam, minha netinha. Lembre sempre disso. É perigoso lá fora! Ocê pode encontrar o Lobo Mau...
- Vó... pra onde a mamãe foi?
A velha senhora respirou fundo. Sabia que aquela pergunta derradeira chegaria cedo ou tarde e por mais que tivesse se preparado pra ela, foi pega em total surpresa e descobriu que seria doloroso responder que sua amada filha, mãe da garotinha, nunca mais voltaria. Também causava tristeza em dona Marta falar sobre isso, pois também sentia falta dela, mas antes de tudo deveria confortar sua neta. Deveria esquecer sua própria dor para acalentar sua querida Maria...
- Minha querida... ela está no céu! Está com os anjim do Nosso Senhor.
- Ela não vai voltar mais?
- Uai, ocê vai ver ela de novo! Quando for ao paraíso também, mas não agora. Vai encontrar novamente sua mãe, mas não agora...
Dona Marta sentiu uma lágrima correr–lhe a face e não pode continuar. Suspirou profundamente e fechou os olhos tentando se acalmar. Ela não queria que sua neta percebesse a sua angústia. A carinhosa avó queria poupar a pequena Maria de mais dor e tristeza. Tudo aquilo era pesado e injusto com a menina.
- Não queria que ela fosse, vó. Eu odeio a mãe!
- Ela não teve culpa minha neta... não a odeie! É a vontade de Deus...
- Então eu odeio Deus!
Um ruído agudo de vidro sendo quebrado seguido por uma bravata rompeu subitamente o silêncio da noite e que assustou as duas, avó e neta, que pularam abaladas pelo barulho. Era o pai das crianças chegando mais uma vez bêbado em casa. Com certeza Lucas tinha passado no bar depois de ter trabalhado, se é que ele esteve realmente na oficina naquela tarde. A dona Marta olhou para o menino e viu que ele ainda dormia. Menos mal! No entanto, o garoto se moveu quando mais um estrondo ecoou pela casa. Dona Marta deu um beijo carinhoso na garotinha e foi ver seu genro antes que esse acordasse toda a vizinhança.
A doce Avó foi atravessando o pequeno quarto calma e silenciosamente. Chegou à estrada do cômodo, próximo ao corredor, e foi fechando a porta...
- Vó! – exclamou a menina – Deixa a porta aberta!
- Uai, ocê ainda tem medo do escuro?
- É...
Dona Marta não queria deixar a porta aberta, pois as crianças poderiam ouvir seu pai e perceber o estado deplorável que ele com certeza se encontrava. No fundo Lucas era um bom homem, mas a perda da esposa tinha sido demais para ele, ou melhor dizendo, demais para todos. A única que estava forte era a avó, mas mesmo assim ela sabia que era aparente, logo cairia. O que seria desta família se isso acontecesse? Quase desabou na frente de sua menina! Não, dona Marta tinha que ser mais firme. Ela contemporizou sobre a questão e resolveu ascender o abajur e assim poder fechar o cômodo adequadamente.
- Assim está melhor, minha netinha?
- Sim vovó! Obrigada!
- Amanhã é sábado! Dia de irmos ao parque, então durma logo!
- Ah, isso é bom demais da conta!
- Não é? Boa noite!
- Boa noite vó!
Resolvido o problema a avó foi cuidar de seu embriagado genro e saiu do quarto das crianças. Era algo que infelizmente estava virando uma rotina e dona Marta não gostava nem um pouco disto, mas não havia muito a se fazer agora.
A pequena Maria fechou os olhos e tentou dormir. A perda de sua mãe ainda era recente e sempre era difícil dormir. A saudade era indescritível e como em todas as noites a garotinha começou a chorar silenciosamente. No entanto, seu irmão, que nada percebeu, levantou da cama rapidamente e foi até a irmã.
- Vamos agora?
- Nem quero mais ir. – disse a pequena Maria – Não ouviu que a vó disse?
- Ah, o Paulim achou um trem lá. Falou que era da banda que tocou ontem e eu to doido ver!
- Vamos ver amanhã na aula!
- Nem! Sem chance! Quero ver agora!
- Mas e se aparecer o Lobo Mau?
- Uai! Eu mato nele com minha Espada de Greyscow!
- Sua espada? – ralhou a menina – Acha que é o He-man?
- Se não vai, eu vou sozim mesmo!
- Tá! Vou cocê, mas vou levar a Fifi!
Maria se agarrou a sua mais querida boneca, única feita de porcelana e seguiu o irmão. O casal de garotos saiu do quarto pela janela e com todo o barulho que seu pai bêbado estava fazendo, ao resistir à ajuda da sogra, não foi difícil para que os pequeninos fossem soturnos.
Ganharam rapidamente as ruas recém asfaltadas da cidadezinha em direção a casa do amigo Paulo. Um pouco longe dali, era verdade, por isso as crianças tiveram que andar muito. Entretanto estranhamente naquela noite não havia muitas pessoas andando pela cidade. Estava muito tarde e embora à iluminação fosse precária, a luz da lua cheia ajudavam muito os irmãos.
Havia um silêncio perturbador naquelas ruelas e o medo estava dominando cada vez a menina, mas o pequeno João estava corajoso andando com sua espada de plástico em punho e a confiança que apenas uma criança inconseqüente poderia ter. No entanto, o menino parou quando ouviu o som mais aterrorizador que já tinha escutado em todos os seus poucos anos de vida.
- Nó! O que é isso? – perguntou Maria – Ouviu?
- Si... Sim! – respondeu o irmão tentando recuperar a coragem – Mas não deve ser nada!
Ouviram aquele som medonho novamente e desta vez seus pequeninos ossos gelaram de tal forma que mal podiam se mover. Um som primitivo e ameaçador ecoava nas ruas da cidadezinha e mesmo as pessoas que estavam dormindo em suas casas acordaram aterrorizadas apenas para se encolherem ainda mais em seus lençóis ou se esconder covardemente para debaixo de suas camas tremendo irracionalmente em puro pânico.
O som provocava um medo avassalador!
Era um uivo tão sinistro que não poderia ser de um simples lobo comum. Havia uma força maligna naquilo, certa malícia perversa e enlouquecedora. As frágeis crianças estavam totalmente abandonadas e perdidas nas escuras calçadas da pequena cidade no interior de Minas Gerais.
João foi o primeiro a ver o vulto enorme que se formava bem na sua frente e o rosnado selvagem que aquilo produzia. Sentiu um cheiro nauseante de suor que quase causaram vertigem ao garoto. Ele tentou avisar a irmã, mas não conseguia mover um músculo sequer de seu miúdo corpo.
A criatura se movia lentamente se aproximando cada vez mais fazendo fumaça com sua respiração ofegante. O menino pode fitar os olhos dele que brilhavam em tom avermelhado e assustador.
Subitamente a coisa se moveu furiosa e de maneira muito rápida! João mal pode gritar antes de ser abatido pela bocarra daquilo. A primeira mordida foi logo na garganta que fez o garoto espernear. Garras rasgavam a carne com facilidade, mas foi apenas a segunda mordida que fez o menino finalmente tombar imóvel.
A menina naquela altura já tinha se posto a correr apavorada, mas seu caminho foi barrado pelo corpo do irmão que foi lançado contra o seu. A primeira coisa que ela viu foi sangue! Retalhado, jorrava sangue por toda parte do corpinho de João.
Apenas depois a indefesa Maria pode perceber que seu algoz já estava em pé na sua frente. A criança deu um berro alto, mas que fora abafado por mais um uivo tenebroso...


Continua...


http://www.fanfiction.com.br/historia/121503/Caso_II_-_O_Lobisomem_De_Minas

Nenhum comentário:

Postar um comentário