Sempre
foi muito complicado escrever sobre a maioria dos personagens de história em
quadrinhos, pois geralmente sua revista é antiga e simplesmente vários autores
passaram pelo personagem onde cada um quis deixar sua marca nas revistas. Ainda
mais um personagem famoso e relativamente antigo como o Justiceiro que teve
vários dos grandes autores e artistas da Marvel
Comics em seu título e tem mais de quarenta anos de existência na editora.
Logo,
Frank Castle, como qualquer personagem antigo dos quadrinhos, tem uma
verdadeira profusão de caracterizações de acordo com seus roteiristas mudando
tanto sua personalidade bem como o tom e clima de suas histórias. Podemos ter
um enredo mais investigativo em seqüências detetivescas como escrito por Greg
Rucka; ou histórias de violência crua e brutal como na fase do aclamado Garth
Ennis; um Justiceiro estrategista militar que tenta sobreviver em um mundo
cheio de super heróis e super vilões como com Nathan Edmondson ou até mesmo
mais recentemente escrito pela ótima Becky Cloonan que transforma Castle em uma
máquina de matar com todo o clima dos antigos filmes de assassinos em série.
Mas não importa. Existem características fundamentais no personagem que formam
o alicerce de suas histórias que permeiam o íntimo de sua personalidade, talvez
desde sua criação nos anos 70 sendo tratado com mais profundidade ou não pelos
quadrinistas, no entanto, sempre presente.
O
anti-heroísmo e a psicopatia.
O
Justiceiro (The Punisher) foi um
personagem criado por Gerry Conway, Ross Andru e John Romita na revista da
editora Marvel chamada The Amazing Spider-man de número 129 publicada
em fevereiro de 1974, que recentemente foi trazida na Coleção Histórica Marvel:
Paladinos Marvel Volume 4 da editora Panini.
Nesse
início Frank Castle (ou Franco Castilione) foi concebido como um antagonista
para o Homem Aranha, mas rapidamente conseguiu muita popularidade se tornando o
talvez maior símbolo de anti-heroísmo das comics.
Primeiramente
podemos refletir um pouco sobre o que é um anti-herói, pois apesar do termo ter
sido criado na Grécia Antiga, seu significado contemporâneo teve uma alteração
significativa. Para os helenos na antiguidade um anti-herói era alguém capaz de
atos de altruísmo e heroísmo, mas diferente dos heróis divinos do imaginário
grego temos homens e mulheres cheios de defeitos e falhas sejam físicas ou em
algumas vezes até de caráter. No entanto, são personagens que vencem suas
limitações e acabam realizando ações dignas do reconhecimento dos Deuses. Se
fossemos analisar o significado grego do termo; o Demolidor, o Homem Aranha e o
Homem de Ferro seriam exemplos melhores de anti-herói, entretanto o termo é
utilizado de outra forma nos dias de hoje.
A
versão contemporânea de anti-herói, esse é um personagem de qualidades bem
diferentes, seria uma espécie de herói que não tem os valores consagrados do
bom mocismo e se torna capaz de cruzar a linha que separa o bem e o mal para
concluir seus objetivos de salvar inocentes. Realizar o que o personagem
entende de correto. Logo, nas comics
isso se aplica ao maior tabu dos super-heróis nas histórias em quadrinhos, ou
seja, são heróis que matam.
O
Justiceiro é um personagem que como qualquer herói Marvel que busca salvar os inocentes combatendo criminosos, e até
super-vilões, mas ao invés de inspirar as pessoas por um código de ética e
moral apurados, como o Capitão América, por exemplo, Frank Castle usa táticas
de tortura e armas militares extremamente letais para atingir seus objetivos e
salvar o dia no final, mesmo que seja um fim sangrento, brutal e lotados de
mortes escatológicas com corpos dilacerados da bandidagem.
Assim
sendo, da mesma forma que podemos encarar o Justiceiro como maior representante
do anti-heroísmo contemporâneo, temos o Homem Aranha representando esse
anti-heroísmo clássico de herói cheio de defeitos e dilemas bem humanos. O quão
é interessante que foi justamente em uma revista do aracnídeo dos anos 70 que
vimos pela primeira vez à emblemática caveira e expressão carrancuda de Frank
Castle.
Então
temos um personagem durão que não tem medo de usar os mesmos meios dos inimigos
marginais para conseguir enfim varrer a criminalidade de sua cidade. Claro que
o Justiceiro não poderia ter estórias tão ingênuas e fantasiosas como de seus
colegas super heróis da editora. Suas revistas teriam que ter um tom mais
realista e urbano e mesmo seus inimigos não poderiam ser espalhafatosos de uma
galeria de super vilões, mas algo mais parecido com criminosos comuns como
traficantes de drogas ilícitas, mercadores da morte e marginais que aterrorizam
a população comum.
Todo
esse conceito do Justiceiro tem, claro, um contexto histórico dos anos 70 e a
descrença dos estadunidenses em suas instituições depois da opinião publica se
voltar contra a Guerra do Vietnã e a permanência de seus soldados no conflito.
Ora, a população dos Estados Unidos nunca tinha visto uma guerra como essa ser
televisionada e ficaram horrorizados com todas as barbaridades feitas no Vietnã
inclusive pelos próprios soldados dos EUA e começaram a questionar se realmente
havia a necessidade de se envolverem nesse conflito e quem estaria ganhando com
tudo isso na verdade. Essa descrença pelas instituições também gerou uma crise
de desconforto com a figura do herói convencional com sua moral rígida e
ilibada. O Capitão América não era mais tão aclamado como foi nos anos 40 em
conseqüência da Segunda Guerra Mundial.
Aquele
bom mocismo não era mais apreciado.
A
marginalidade nas cidades, principalmente em regiões periféricas, estava em um
nível altíssimo e muito se perguntava qual era o real interesse das autoridades
que não davam conta da criminalidade ou simplesmente tinham abandonado a
população mais pobre. Um sentimento de revolta generalizada se instaurou nas
pessoas e acabou influenciando toda uma cultura que via no ícone do anti-herói
alguém que poderia de fato vingar o homem de bem de toda essa sujeira e
criminalidade galopantes.
Logo
temos uma enxurrada de anti-herois na cultura pop dos anos 70 e inicio dos anos
80 nos Estados Unidos. Temos na literatura personagens como Ignatius de Uma Confraria de Tolos escrito por John
Kennedy Toole e Huckleberry Finn do
escritor Mark Twain; no cinema tivemos Harry Callahan interpretado por Clint
Eastwood em Perseguidor Implacável,
Travis Bickle interpretado por Robert de Niro em Taxi Drive e claro o ícone do anti-heroismo Paul Kersey
interpretado por Charles Bronson em Desejo
de Matar. Assim nas histórias em quadrinhos não seriam diferentes com a
popularidade do Justiceiro.
Na
caracterização de Frank Castle como representante da Marvel Comics para essa onda anti-heróica, temos um vigilante que
age fora da lei, muitas vezes tendo que escapar da policia, torturando
marginais para conseguir informação e além de matar com extrema facilidade, o
Justiceiro, por vezes, é dado a atos de crueldade a lidar com bandidos em sua
vingança contra a criminalidade.
Vingança,
pois o Frank Castle tem em sua origem uma família morta (esposa e dois filhos)
por presenciar, em um parque, uma negociação da máfia. O Justiceiro ao invés de
ir atrás apenas da máfia em questão compreende que toda a classe criminosa é
culpada pelo ocorrido e entende que o que aconteceu a ele poderia ocorrer a
qualquer um, logo ele deveria iniciar uma cruzada contra todos os marginais que
fazem o cidadão comum sofrer e para isso ele tem a mãos todo o treinamento de
fuzileiro veterano da Guerra do Vietnã à sua disposição. Não teria como ser
mais clichê de personagem anti-herói dos anos 70 e 80.
No
entanto, o apego do personagem a vingança e não justiça (entenda que o nome
original do anti-herói é Punisher,
que em uma tradução impossível seria algo como “Punidor” e não Justiceiro);
tanto quanto seu apelo a violência e tortura nos faz refletir se o personagem
realmente é dado a ações minimamente heróicas ou simplesmente o que move Frank
Castle é o fato dele ser um psicopata.
Apesar
de poucas vezes, é claro que esse questionamento já apareceu em suas estórias
com destaque para a fase de Garth Ennis a frente do título do Justiceiro
principalmente no excelente arco Nascido para Matar (Born de 2003) nos revelando que a psicopatia de Frank Castle veio
antes da morte da sua família, mas durante a Guerra do Vietna, onde ele pode
extravasá-la. Assim o personagem faria o mesmo contra a criminalidade em sua volta
aos Estados Unidos depois do fim da Gerra.
Entretanto,
é do mesmo Ennis o arco Bem Vindo de Volta, Frank (The Gathering Storm de 2000) que o personagem, apesar de claramente
ter um rancor enorme contra a criminalidade, mostra atos heróicos e até altruístas.
Tudo isso como uma narrativa do quadrinista para dar mais profundidade ao
personagem, mas também nos faz refletir sobre os ideais do Justiceiro e nossa
relação com isso.
Será
que consumir e gostar das estórias do personagem nos revela que somos tão
vingativamente psicóticos como o Justiceiro ou é uma válvula de escapismo onde
botamos para fora, ao ler, toda nossa revolta contra a criminalidade cada vez
mais assustadoramente gritante? Compreender o personagem e até nos
identificarmos com ele faz com que compactuamos com ideais proto-fascistas e
que concordamos com a máxima “bandido bom é bandido morto”?
A
revista do Justiceiro faz apologia ou incentiva a violência?
Acredito
que a importância de um personagem como esse é justamente levantar esses questionamentos
principalmente quando seus ideais são postos a prova nos faz refletir em quem
somos e talvez em que tipo de sociedade buscamos. Mesmo quando não concordamos
com as atitudes do Justiceiro temos nele um exemplo de como a sociedade pode
acabar entendendo a justiça e a criminalidade e amadurece nossas próprias
opiniões seja como sociedade, seja em nossa própria personalidade, ou seja, no
entendimento de idéias divergentes à nossa.
Talvez
por isso um dos mais importantes e aclamados encontros do Justiceiro com algum
herói da editora seja seus, agora, vários embates com o Demolidor que quase
sempre chega ao debate de idéias entre os personagens em um contraponto
extraordinário entre o realismo cruel e justiça punitiva do Justiceiro e o
heroísmo limpo e justiça na esperança de reabilitação do Demolidor.
No entanto, isso seria assunto para outro
texto...
Texto excelente
ResponderExcluirObrigado Rosemary!
ExcluirObjetivo e limpo.
ResponderExcluirMuito obrigado!
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